30/08/2023
Em uma escola de Altinho, pequeno município do Agreste de Pernambuco com população de 20 mil pessoas, cercado de vários estudantes, um jovem negro franzino, de 14 anos, fala a todos, ainda que com a voz baixa: "A gente precisa, sim, aprender nossas origens, porque o Brasil é formado por diferentes povos e diferentes culturas, como na culinária, religiões, entre outras." Ele é aplaudido pelos colegas.
Gustavo Sales direciona a fala a um grupo de estudo que tem visitado escolas do Agreste para levar uma apresentação de mamulengo que aborda a importância do ensino da cultura africana.
O que talvez pegue alguns de surpresa é que o grupo de estudos, preocupado com o legado africano e uma abordagem de ensino antirracista, não é de história, sociologia ou da seara de humanas, mas, sim, de matemática.
O Grupo Aya-Sankofa de Estudos Decoloniais e Afrocentrados em Educação Matemática foi instituído em 2019 no âmbito do programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Campus Agreste, em Caruaru. Motivou a criação do grupo a percepção de que a formação inicial de professores que ensinam matemática, salvo exceções, não discute questões sobre colonialidade e decolonialidade, eurocentrismo e a educação das relações étnico-raciais na aprendizagem da matemática.
"Sabedorias tanto africanas como afro-diaspóricas, ao longo da história, são colocadas no lugar da invisibilidade. Se a gente pensar na história da matemática, ela é contada a partir do advento grego, dos supostos gênios e heróis da matemática. É um discurso colonial, porque vai trazer esse tipo de conhecimento como único. E aí as sabedorias outras, inclusive complexas e de grande significado e que deram até base para que esses filósofos e matemáticos sistematizassem algo, foram colocadas no lugar do primitivo", resume o professor Ivanildo Carvalho, que formou o Aya-Sankofa.
Carvalho viveu 40 dos seus primeiros 44 anos no Alto José do Pinho, bairro periférico do Recife, e avalia que essa vivência na comunidade foi importante para as reflexões que promove atualmente. "Esse movimento de pensar uma matemática antirracista vem dessa reflexão da época que fui estudante. Tudo isso fez refletir a falta de representatividades, o quanto faltou para mim e falta para crianças e adolescentes, negros e negras, nas escolas da periferia, referência de cientistas e matemáticos de sua raça", reflete. "Crianças e jovens não se veem como futuros matemáticos e cientistas justamente por falta dessa representatividade."
Na juventude, Carvalho começou a se envolver com o Teatro do Oprimido, abordagem teatral interativa e participativa desenvolvida por Augusto Boal para promover conscientização e transformação social. "Eu acho que isso foi me deixando mais sensível para poder hoje pensar que é possível a gente articular o ensino de matemática com uma vivência que perpasse a arte, mas não só isso: algo que também esteja articulado nessa luta por uma educação matemática antirracista", afirma.
MatemÁfrica
Ivanildo Carvalho segura um jogo de tabuleiro africano. Foto: Cortesia
O espetáculo de mamulengo do grupo de estudos matemáticos, intitulado 'MatemÁfrica: raízes do voo da Sankofa e a potência do Boi-Bumbá', surgiu no contexto da pandemia, quando a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) lançou um edital de criação artística e cultural, com a exigência de que o produto artístico fosse apresentado em meios virtuais.
"Quando eu vi esse edital, comecei a pensar o que a gente poderia fazer para submeter, e aí chegou a ideia do teatro de mamulengos", lembra o matemático. O conceito era colocar personagens do Boi-Bumbá, como Bastião, Mateus e Catirina, para refletir suas ancestralidades. "A ideia foi colocar na boca desses personagens que eles vieram de uma ancestralidade rica em conhecimento, inclusive em conhecimento matemático", acrescenta Carvalho.
Com a queda no número de casos de óbitos de Covid-19 no país, o grupo conseguiu desenvolver uma versão presencial da peça. Além de Altinho, o projeto já foi apresentado nas cidades de Riacho das Almas, Bezerros e Caruaru, todas do Agreste de Pernambuco.
"Já estou sentindo muita energia de vocês para aprender matemática africana", diz a personagem de Catirina no começo da apresentação. "Quem aí está sentindo essa energia positiva?", ela pergunta, ouvindo um coro de “eu” ainda envergonhado dos alunos, que tendem a interagir mais conforme vão se ambientando com o ritmo da história.
Na peça, o personagem do Professor Canavieira, homem branco e professor de matemática, representa aquele que desprezava os conhecimentos africanos e aprende, junto ao público, as sabedorias e práticas orais que vieram do Velho Mundo. "Me desculpem, mas eu não posso considerar o conhecimento dos senhores como ciência. O que não está escrito não é ciência", diz o personagem inicialmente. Ao final da história, o Professor Canavieira emite outra visão: "Eu, como homem branco cheio de privilégios, aprendi a ter empatia com toda e qualquer luta por igualdade de direitos e saberes", comenta.
A apresentação, ao longo de cerca de 40 minutos, aborda conhecimentos matemáticos africanos como o relógio egípcio, o trançar de cabelos, desenhos geográficos e jogos de origem africana.
Recepção
"A resposta tem sido fantástica. Ao mesmo tempo que a gente toca nessas questões, a forma que os mamulengos conversam e interagem deixam as crianças encantadas", celebra Ivanildo Carvalho. "Fico pensando que na minha época também tive contato com teatro na escola municipal. Quando vejo as crianças encantadas com o teatro de mamulengo, mexe muito comigo. Inclusive, fico pensando quanto isso pode reverberar na cabeça dessas crianças e adolescentes que assistem."
Apresentações do teatro de mamulengos em escolas do Agreste pernambucano. Foto: Reprodução