“No Recife,
não existem
calçadas”

Para quem vive sob uma cadeira de rodas, passeios públicos bem conservados são questão de sobrevivência

Um agitado grupo de estudantes, uma mãe puxando o filho pela mão, um casal que troca carinhos enquanto segue seu caminho. Em comum, todos esses transeuntes têm a possibilidade de circular com relativa despreocupação pelas calçadas do belo bairro de Santo Antônio, em uma manhã de sol de sexta-feira. Atrás deles, logo surge o semblante pávido da estudante de arquitetura Jéssica Pacheco de Almeida, de 31 anos, para lembrar que, no Recife, até o direito de ocupar a calçada é um privilégio. Fora do passeio público, há pouco espaço para romantismo e contemplação do vasto patrimônio histórico da capital pernambucana. Quando a cadeira de rodas está espremida entre ônibus, carros e caminhões, sobreviver sem arranhões é a principal meta dos deslocamentos urbanos.

As más condições de conservação das calçadas também afetam o equipamento do qual Jéssica depende para se locomover. “Somos muito valentes, eu e a cadeira de rodas. Mas os próprios componentes dela vão quebrando e se desgastando se eu forçar o uso em calçadas ruins, por isso é tão comum ver cadeirantes descendo para as vias”, denuncia.

Mesmo assim, por vezes, Jéssica tenta fazer o caminho inverso. Em plena Avenida Guararapes, uma das mais movimentadas do Centro do Recife, o medo de tombar no meio-fio faz com que ela decida tentar acessar uma das calçadas, que dá para o edifício-sede dos Correios. Com dificuldade, ela até consegue subir em uma rampa, mas, ao chegar ao fim do quarteirão, não encontra por onde descer. “E aí, encontra uma rampa pra eu descer? Nesses casos, a gente perde tempo e tem que voltar todo o percurso para voltar para a via”, lamenta.

Sobram leis, faltam calçada

“Eu tenho osteogênese imperfeita, doença que causa fragilidade nos ossos, fraturas com certa facilidade, sendo conhecida como ‘ossos de vidro’. Por isso, sinto uma certa fadiga ao andar na rua. No que a cadeira trepida ou tomba em buracos, fico ainda mais cansada e sinto muita dor”, explica Jéssica. Assim, a estudante relata ter decidido se movimentar na via, convivendo com o constante risco de ser atropelada por veículos motorizados. “No Recife, não existem calçadas. Claro que não me sinto segura, só que não tenho outra opção, essa é a grande tristeza que me dá. Decidi viver da melhor maneira possível, tenho objetivos, quero crescer”, acrescenta.

Jéssica costuma se movimentar no asfalto, entre os veículos motorizados.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJá Imagens

Já na Rua do Sol, na mesma região da cidade, outra rampa com alta declividade em relação à via, na prática, impossibilita a subida do cadeirante e obriga a estudante a pedir ajuda de outros transeuntes para subir a cadeira na calçada. Em pouco menos de cinco metros, a presença do comércio ambulante no passeio estreito- com largura abaixo do que os recomendados 1,20m- a faz descer novamente rumo ao asfalto, por força dos braços de pessoas solidárias. “Eu sou uma pessoa igual a você e a qualquer um. Minha única diferença é que meu meio de andar é uma cadeira de rodas. Se eu não consigo andar sozinha na calçada, estou sendo discriminada”, desabafa Jéssica.

Calçadas do Brasil

Em 2019, Jéssica foi convidada pela campanha Calçadas do Brasil para avaliar as calçadas do Recife.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJá Imagens

Em 2019, Jéssica decidiu transformar sua insatisfação em luta pela cidadania. A estudante atuou voluntariamente como avaliadora das calçadas do Recife na campanha Calçadas do Brasil, desenvolvida pelo portal Mobilize, com o objetivo de realizar um levantamento nacional sobre as condições dos passeios públicos brasileiros. Para isso, a estudante recebeu treinamento da equipe e autonomia para escolher os locais avaliados.


“No Recife, a divisão por zoneamento compreende seis RPAs [Regiões Político Administrativas]. Na minha escolha, como base de estudo, destaquei principalmente a RPA 1, onde está a centralidade mais importante da cidade e onde há o maior fluxo de pessoas. Além dela, dei representação de duas ou três avaliações em cada uma das outras zonas, de modo a abranger toda a cidade. E priorizei os vários tipos de equipamentos públicos”, conta Jéssica.

Com trena e prancheta em mãos, Jéssica foi às ruas com a ajuda de uma assistente para realizar as medições, documentando as características das calçadas da capital pernambucana, notificando os passeios que apresentassem irregularidades relacionadas a degraus, largura, rampas, inclinação, obstáculos, iluminação, paisagismo e arborização, além de sinalização. A Avenida Boa Viagem, na Zona Sul, por exemplo, conta com o passeio público mais bem avaliado da cidade, enquanto a calçada do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, na Zona Oeste, foi considerada a pior.


Os dados podem ser acessados pelo público em um mapa interativo disponibilizado pela campanha. De acordo com a arquiteta e urbanista Marília Hildebrand, que atuou como coordenadora nacional do Calçadas do Brasil, a pesquisa levou em consideração apenas as calçadas mantidas diretamente pelo poder público. Tais equipamentos receberam notas, em uma escala de zero a dez, com base na observação de quatro critérios: sinalização, acessibilidade, segurança e conforto para o pedestre. “Nenhuma das capitais conseguiu chegar a uma média mínima aceitável de oito pontos. Observamos que a média nacional foi de 5,7 e que mesmo a capital melhor avaliada, São Paulo, ficou abaixo da nota mínima, com 6,93 pontos”, comenta.

O levantamento também aponta que o Recife foi apenas a 12º cidade melhor avaliada, com nota 5,92. Na ocasião, a equipe do Mobilize também testou o atendimento de reclamações da capital pernambucana, disponível através de formulário no site da Prefeitura do Recife (www.recife.pe.gov.br). Segundo o relatório, nas duas tentativas do denunciante, não houve resposta da gestão municipal ao problema. “Na divisão modal das cidades brasileiras, 30% das viagens são realizadas a pé. É uma cifra muito relevante para que o poder público continue relegando esse assunto, o que pode ter relação com a renda de quem precisa andar a pé. E em que condições essas pessoas estão fazendo isso? De forma precária”, afirma Hildebrand.


A pesquisadora também frisa que Calçadas do Brasil funcionou como uma continuidade de sua primeira edição, realizada entre os anos de 2012 e 2013, a partir de quando passos importantes pela mobilidade a pé foram dados a nível nacional. Desde 2015, está em vigor a Lei de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12), que reafirma a prioridade de circulação nas ruas para pedestres. Em 2016, também passou a valer a Lei Brasileira da Inclusão (Lei 13.146/15), que estabelece os direitos das pessoas com deficiência física e determina que o poder público tem a obrigação de garantir acessibilidade em ruas e calçadas.

Já em 2019, os resultados de Calçadas do Brasil motivaram uma audiência pública da Subcomissão Temporária sobre Mobilidade Urbana, ligada à Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal. “A audiência foi bem esvaziada, mas gerou um debate interessante e teve participação de pessoas da sociedade civil. Sinceramente, em termos de encaminhamentos, a gente não teve muitos avanços, mas conseguimos realizar a entrega do estudo em mãos para os gestores”, comenta a arquiteta.

Rampas e buracos

Os resultados da pesquisa mostram ainda que, no Recife, os aspectos mais negativos das calçadas foram a má qualidade da sinalização voltada aos pedestres. Faltam semáforos (média 3,85), mapas de orientação (3,30), faixas de travessia (4,70) e há poucas calçadas com rampas de acessibilidade (média 3,55), equipamento que, quando é encontrado, está fora dos requisitos da norma.

Para Messias Manuel da Silva, representante do movimento D+ eficiente por Pernambuco, a falta de rampas e o excesso de buracos nas calçadas são os principais problemas enfrentados pelos cadeirantes no Recife. “Sem boas calçadas, não há cidadania, somos obrigados a andar em meio aos carros. Em pleno 2022, ainda tem cadeirante isolado em casa por falta de calçadas adequadas. Tem gente que tem medo de ir para a rua por não ter muita habilidade na cadeira”, frisa.

Os passeios na rua são fundamentais para o bem-estar do pequeno Luan Henrique, de 11 anos.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJá Imagens

De acordo com o Núcleo de Engenharia do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE), degraus com altura entre 5mm e 15mm, devem ser tratados em forma de rampa com inclinação máxima de 50%. “Desníveis superiores a 15 mm devem ser tratados como rampas com inclinação de até 8,33% (1:12)”, diz relatório da instituição. Já a Norma Brasileira (NBR) 9050/2004 da Associação Brasileira de Normas Técnicas estipula largura livre mínima recomendável de 1,50m para as rampas em rotas acessíveis, sendo o mínimo admissível 1,20m.

A norma diz ainda que a inclinação transversal em rampas externas deve ser de 3%. Sobre este tópico, o Decreto Municipal de Recife 20604/2004 determina o limite de 2% como inclinação máxima. “Meu filho tem paralisia cerebral desde o parto. Quando a gente encontra rampas nas ruas, preciso suspender a cadeira dele”, diz o desempregado Ailton Valdevino de Azevedo, que abriu mão de trabalhar para cuidar do filho, Luan Henrique da Silva Azevedo, de 11 anos.

Os dois vivem no bairro do Ibura, na Zona do Sul, e têm o sustento garantido pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo, a que o garoto tem direito. Diante da baixa renda mensal, Ailton ressalta que os passeios pela cidade são de grande importância para o lazer e bem-estar do filho. “Se a gente deixar nossos filhos em casa, isso retarda a situação deles. Ele precisa sair e adora passear pela rua, mas o que a gente encontra são calçadas danificadas e esburacadas. Por esse motivo, a cadeira já quebrou algumas vezes”, lamenta.

Tombo na “Casa
do Povo”

Agnaldo mostra o buraco que partiu sua cadeira ao meio, em frente ao Palácio do Governo de Pernambuco.

Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Também acometido pela paralisia infantil, Agnaldo Muniz Farias, de 52 anos, sabe bem o que é perder a cadeira de rodas em meio à buraqueira das calçadas. De posse um um novo equipamento, cedido pela Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) há cinco meses, ele relata que levou um tombo na calçada do Palácio do Campo das Princesas, sede do Governo de Pernambuco, no Centro do Recife. “É uma calçada cheia de pedras soltas. Tentando chegar até a porta, minha cadeira ‘torou’ no meio, ao cair em um dos buracos, e eu caí no chão. Estava chovendo bastante”, lembra.


Na ocasião, Agnaldo participava justamente de um ato que pedia mais atenção do poder público ao fornecimento dos equipamentos necessários para as pessoas com mobilidade restrita. “Nem o Palácio do Governo tem acessibilidade. Dá para perceber que não ligam para a gente, a gente se sente invisível. Somos seres humanos”, lamenta.

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