O guardião das calçadas do Recife

Arquiteto e militante da mobilidade a pé na cidade do Recife, Francisco Cunha já distribuiu, sozinho, mais de 20 mil multas cidadãs contra carros estacionados nas calçadas da cidade.

O guardião das calçadas do Recife

Arquiteto e militante da mobilidade a pé na cidade do Recife, Francisco Cunha já distribuiu, sozinho, mais de 20 mil multas cidadãs contra carros estacionados nas calçadas da cidade.

“Vai oiando coisa a grané,
coisa que pra mode vê,
o cristão tem que andar a pé”.

- Estrada de Canindé, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

“Eu caminhava pelas ruas e me irritava muito com os carros estacionados nas calçadas e discutia com muita gente. Aí li alguma coisa sobre um exemplo de Multa Cidadã e pensei que seria uma boa ideia, porque eu só teria que deixar um papel nos vidros dos carros e ir embora. Hoje, percebo uma grande diferença na região. Já multei todo mundo”, brinca Francisco.

Contemplador das coisas da cidade, o arquiteto Francisco Cunha, sempre que pode, deixa o carro na garagem para caminhar a pé. Aos 65 anos, ele conta com o velho chapéu para vencer a ausência de sombras nos passeios públicos do Recife, marcado por suas temperaturas quase equatoriais, e com a criatividade para lidar com os desafios cotidianamente apresentados pelo trajeto. Há oito anos, depois de identificar grande número de carros estacionados nas calçadas, Francisco elaborou e passou a distribuir, sozinho, multas cidadãs para alertar os motoristas responsáveis pela infração. Desde então, ele estima que já “aplicou” mais de 20 mil delas e garante que a iniciativa transformou o bairro do Parnamirim, na Zona Norte do Recife, onde vive.

No formato de panfleto, a Multa Cidadã do arquiteto lembra que, de acordo com o Art. 181 do Código de Trânsito Brasileiro, estacionar carro na calçada constitui infração grave, sujeita ao registro de cinco pontos na carteira e multa de R$ 127,69. “Não estacione na calçada. Além de ser uma infração grave é um enorme desrespeito ao cidadão-pedestre. A calçada é o primeiro degrau da cidadania urbana. Quando ela não é respeitada, não se pode esperar respeito por mais nada numa cidade”, diz o texto do material educativo.


Bem-humorado, Francisco confessa, contudo, que nem sempre os “autuados” são receptivos à campanha. “Outro dia, coloquei uma das multas no vidro de um carro estacionado na calçada e o cara já foi botando a mão para me impedir, o que gerou uma discussão. As pessoas não sabem a diferença entre calçada e estacionamento. No fim, eu tirei a multa e ele tirou o carro da calçada”, conta.

Sobram leis, faltam calçadas

Cunha critica legislação nacional sobre velocidade de veículos automotores em vias urbanas.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

No livro “Calçada: o primeiro degrau da cidadania urbana”, assinado em parceria com o engenheiro Luiz Helvécio, Cunha apresenta a grande quantidade de legislações que regulamentam as calçadas, tanto a nível nacional quanto local, mas critica a falta de esforço político para cumpri-las. “O Código de Trânsito Brasileiro, mesmo sendo um monumento à carrocracia, diz que os veículos maiores são responsáveis pela segurança dos menores e que todos são responsáveis pela incolumidade do pedestre. Isso acontece por uma razão simples: quem caminha não tem parachoque, motor, para-brisa, airbag, nem cinto de segurança”, diz o arquiteto.


Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a calçada deve ter largura mínima de 1,20 m. É recomendado ainda que os passeios exclusivos para pedestres sejam divididas em: uma faixa de serviço, mais próxima à via, com 0,75 m; uma faixa de acesso, sem largura mínima e mais próxima da saída dos estabelecimentos comerciais e residenciais; e uma faixa livre, entre as outras duas, com largura mínima de 1,20m (ver arte). “Na prática, as calçadas não costumam ter essa largura mínima e têm problemas com relação ao uso. Barracas, estabelecimentos e bancas de revistas avançam sobre elas sem respeitar a passagem do pedestre e, pior, há ainda os carros estacionados na calçada, de forma impune. Um absurdo completo”, comenta Francisco.


No âmbito municipal, o art. 74 da Lei nº 17.511/2008, que institui o Plano Diretor da Cidade do Recife, também determina a “priorização da circulação de pedestres, das bicicletas e dos veículos coletivos”. Já a Lei de Edificações e Instalações estabelece, em seu Art. 220, que as calçadas são obrigatórias “em toda(s) a(s) testada(s) do(s) terreno(s), edificados ou não localizado(s) em logradouro(s) provido(s) de meio-fio e pavimentação, garantindo acessibilidade e segurança”.

De acordo com Cunha, no Recife, cerca de 30 agentes públicos e privados brigam pelo estreito espaço das calçadas.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Segundo a legislação do Recife, a responsabilidade pela construção e manutenção dos passeios públicos é do proprietário do lote e do poder público apenas nos casos das frentes de água (rios, lagoas, canais e praias), dos canteiros centrais de vias, das praças, dos parques, de imóveis públicos municipais localizados em logradouros públicos, de rampas nos cruzamentos das travessias sinalizadas e de canteiros centrais nas vias públicas. “Na prática, cada dono de lote faz a calçada como quer e elas acabam ficando descontínuas. Isso só funcionaria se a prefeitura fosse fiscalizadora, multasse quem faz errado e definisse como deve ser, piso contínuo e que não derrape”, coloca o ativista.


Por outro lado, Francisco questiona a regulamentação existente acerca da velocidade máxima permitida aos carros nas cidades. “Se você for atropelado a 60 km/h, que é a velocidade permitida em vias locais, sua chance de morrer é de mais de 85%. A ONU [Organização das Nações Unidas] recomenda velocidade máxima de 50 km/h nas cidades”, critica.

Mandamentos do pedestre

Fotos: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

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