Amizades que resistem nas calçadas

Ponto de encontro em bairros e comunidades do Recife, o passeio público ainda é espaço afetivo em que se desenvolvem amizades e uma relação mais cordial com a cidade

Um “Boa tarde” para lá, um “como vai?” para cá, e logo a calçada da dona de casa Luzinete Lúcia dos Santos, de 87 anos, se torna sua sala de estar. Com a mobilidade comprometida em razão da artrose, ela se locomove com a ajuda de um andador e não consegue mais passear pelo bairro da Mangueira, na Zona Oeste do Recife, onde mora há mais de 30 anos. Fugindo do calor e da solidão de quase todas as tardes, ela refresca o corpo e a mente na frente de casa, ponto de encontro com os vizinhos e com a cidade.

“De quando vim morar aqui para hoje em dia, as calçadas pioraram. Quem teve condições de fazer a sua fez, quem não teve, como eu, foi tapando os buracos que apareciam com cimento. O resultado é que ficou tudo muito desigual ao longo da rua, eu mesma já levei várias quedas”, lamenta Luzinete.


Sentada na cadeira ao lado, a vizinha Sônia Anacleto, de 51 anos, é quem costuma garantir que Luzinete não volte a se machucar em seu já restrito itinerário entre a porta de casa e a calçada. Juntas, as duas dividem novidades, angústias e alegrias há 21 anos, desde que Sônia se mudou do Rio de Janeiro para o Recife. “No começo, ela me achava metida, porque eu sou carioca. O tempo foi passando, a gente se conheceu melhor conversando na calçada e fizemos amizade. Hoje em dia, sou os olhos e os ouvidos dela aqui na rua”, afirma.

Idosos são maioria dos que utilizam a calçada como espaço de socialização.

Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

A poucos metros das duas, a aposentada Lourdes da Silva, de 72 anos, acredita que a boa convivência entre os vizinhos é fundamental, sobretudo, para as pessoas idosas do bairro. Também moradora da rua Doutor João Elísio, onde residem Luzinete e Sônia, ela aponta para o final da via e chama atenção para o fato de que a terceira idade representa a maioria das pessoas que ocupam o passeio público para o lazer e a convivência urbana. “Tem gente que passa por aqui e não dá nem bom dia. Isso dói. Se essa pessoa passar mal, quem vai socorrer? Os idosos só querem um pouco de atenção. Alguns deles contam a mesma história várias vezes, mas faço de conta que estou escutando pela primeira vez. Isso deixa eles muito felizes”, confessa.

Natural de São Caetano, no sertão pernambucano, Lourdes comprou sua casa na Mangueira há 41 anos, testemunhando o processo de desenvolvimento urbano que se repetiu em praticamente todo o Recife. “Todo esse quarteirão era um sítio. O proprietário foi vendendo os lotes e cada um foi construindo sua calçada como quis. Terminou cada uma ficando de um jeito”, relata. Para ela, a tarefa de construir e zelar pelo passeio público não deveria ser de exclusiva responsabilidade do proprietário do lote, como acontece em quase todos os municípios brasileiros. “A Prefeitura não cobra IPTU caríssimo? Então por que não fazem as calçadas tudo no mesmo padrão para os donos das casas só irem ajudando a manter? Do mesmo jeito que eles zelam pelo asfalto, deveria ser com as calçadas”, cobra.

Lourdes (em pé) ao lado dos vizinhos, Maria e Pedro.

Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Apesar de reconhecer o aumento da violência no bairro e na cidade como um todo, Lourdes se recusa a deixar de comprar bolo e café para confraternizar com os vizinhos nas calçadas. Ela acredita que a presença das pessoas na rua também contribui para um passeio público mais seguro. “ Bato na porta de alguns vizinhos e digo: ‘me espere que vou trazer seu lanche com um guaraná’. A gente acompanha como está a vida de cada um, como vão de saúde, se estão precisando de algo. São coisas que mudam a qualidade de vida do bairro. Quando vim do interior, escolhi morar aqui porque é muito bom, perto de tudo. Adoro a Mangueira”, completa.

“A união faz a força”

A paisagem composta por calçadas movimentadas pelo comércio, crianças brincando e idosos confraternizando ainda pode ser apreciada em boa parte da Zona Oeste do Recife. Na esquina da rua Bom Jardim com a avenida Vinte e Um de Abril, região limítrofe entre os bairros da Mangueira, Mustardinha e San Martin, o aposentado Paulo Francisco da Silva, de 68 anos, fincou um conjunto de barras de ferro na calçada tentativa de garantir a permanência dos vizinhos do local. Em razão da sinuosidade da curva que liga a avenida à rua, ele teme que os carros que circulam em alta velocidade subam no passeio público durante a conversão ou até atropelamentos, a exemplo dos que já ocorreram em vias paralelas. “Nessa principal, os veículos andam muito rápido e, a gente que é idoso, fica logo com medo. A gente já tentou se juntar para mandar botar uma lombada no início da rua, mas essas coisas precisam de autorização”, lamenta.

Lourdes (em pé) ao lado da vizinha Maria.

Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Paulo instalou barras de ferro para se sentir mais seguro em permanecer na calçada.

Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Por detrás das barras de ferros instaladas por Paulo, Edna Francisca Guimarães, de 56 anos, se sente mais segura para ocupar a calçada e interagir com os vizinhos. Ex-costureira industrial, ela não consegue trabalhar desde que perdeu 50% da visão, em razão de uma infecção retinal. “Como não enxergo bem, tenho medo de cair nas calçadas e acabo não saindo muito de casa. Venho me desestressar aqui na rua, botar a mente para funcionar, porque praticamente vivo sozinha. Qualquer socorro, chamo os vizinhos. A união faz a força”, afirma.

Marluce dá exemplo de cidadania ao varrer sua calçada e a dos vizinhos.

Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Em uma região que oferece poucas opções de lazer para a terceira idade, Marluce Francisca da Silva também faz sua parte para manter a calçada agradável para si e para vizinhos como Paulo e Edna. Ela reclama do excesso de lixo que alguns transeuntes deixam nas calçadas e se encarrega de varrer, sozinha, parte da rua. “Gosto de movimentar meus braços, é melhor do que estar trancada dentro de casa, pensando no que não devo. Enquanto estou varrendo as calçadas, fazendo algo que sirva, fico assistindo à rua. É melhor do que televisão e é de graça. Passa um ou outro, a gente vai conversando, sabendo da vida e assim vai!”, conclui.

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