Calçadas
não são prioridade no planejamento urbano

Para especialistas e militantes pela mobilidade a pé, embora seja universal, o ato de caminhar é o mais desconsiderado pelas políticas urbanas do país

De acordo com a presidente da Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e doutora em Mobilidade Ativa pela Universidade de São Paulo (USP), Meli Malatesta, os deslocamentos a pé correspondem a 39% das viagens realizadas nas cidades brasileiras. “É o tipo de viagem mais praticado, segundo os dados mais recentes da ANTP, de 2018. A divisão populacional também mostra que, quanto menor a cidade, mais se anda a pé. O relatório também mostra que 26,5% das viagens ocorrem por transporte coletivo e temos que considerar que o destino final, nesses casos, é percorrido a pé”, afirma.


Assim, somados os dois percentuais, é possível afirmar que mais de 65% dos deslocamentos do país envolvem a mobilidade a pé. “Sendo assim, se a gente for pensar com um pouco de bom senso nas políticas urbanas, seria o mínimo esperar que a distribuição dos espaços acompanhasse essa proporção. O que a gente vê na maioria das cidades brasileiras é que os espaços destinados à circulação a pé, sendo as calçadas a maioria deles, ocupam a proporção mínima do espaço destinado à mobilidade. A maior parte desses espaços é ocupado pelas pistas por onde circula o tráfego motorizado”, acrescenta Malatesta.

Criadas entre os séculos VI e VII, na cidade italiana de Pompeia, as primeiras calçadas surgiram com a função de proteger as pessoas que se deslocavam a pé. No transcorrer da história, outros modais e estruturas de transporte passaram a contribuir com a mobilidade urbana, mas nenhum deles foi capaz de proporcionar os mesmos benefícios ao meio ambiente e à saúde pública que o ato de caminhar. Além disso, também é pelas calçadas que o cidadão ganha intimidade com a cidade e tem melhor condição de vivenciar seu ritmo, sua organização, bem como suas belezas e dissabores. Ainda assim, entre especialistas e militantes da mobilidade a pé, é consenso que a caminhabilidade está longe de ser prioridade nas políticas públicas das cidades brasileiras.

Meli Malatesta chama atenção para as incompletudes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Foto: Acervo pessoal

Política Nacional de Mobilidade Urbana

No dia 3 de janeiro de 2012, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.587, que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Com o intuito de promover a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas nos municípios, a legislação é focada na priorização de transportes não motorizados sobre os motorizados, bem como dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual, além da integração entre os modos e serviços de transporte urbano. “É uma lei incompleta. Ela considera o caminhar como uma forma de transporte e o deslocamento a pé não envolve veículo nenhum. O que a gente propõe é que ela use a ideia de mobilidade ativa, ao invés de transporte, porque o deslocamento a pé não envolve veículo algum”, frisa Malatesta.


A pesquisadora também questiona o fato de que a norma, embora detalhe as diretrizes que devem ser adotadas pelo transporte público coletivo, não descreva com precisão as políticas a serem adotadas pensando em quem anda à pé ou de bicicleta. Nesse sentido, a pesquisadora chegou a trabalhar no desenvolvimento de um Projeto de Lei complementar à Política Nacional de Mobilidade Urbana. Ela evita dar detalhes sobre o conteúdo da sugestão, mas garante que o texto já despertou interesse de alguns parlamentares. “A Lei de Mobilidade Urbana só pensa no usuário de transporte coletivo quando ele está embarcado. Basicamente, o projeto propõe diretrizes para que ele seja considerado quando não está. Os próprios planejadores do transporte são surpreendidos por situações onde eles veem que não foi feita essa etapa complementar para permitir que as pessoas acessem ou saiam do transporte”, destaca.


Nesse sentido, Malatesta entende que é preciso pensar o transporte público aliado às calçadas, faixas de travessia, localização do ponto de espera pelo coletivo e tamanho das plataformas, por exemplo, para que os usuários não apenas permaneçam parados aguardando o ônibus, mas circulem dentro do sistema de transporte. “Dimensionam as plataformas ou situam pontos de ônibus em calçadas que não apresentam largura ou condições suficientes para acomodar com segurança e conforto, não apenas quem está esperando, mas os passageiros que chegam ou saem desses espaços rumo a seu destino final”, completa.

Participação popular

Para a pesquisadora, o problema é agravado pelo fato de que as já minoritárias estruturas dedicadas à mobilidade a pé costumam ser mantidas em más condições. Enquanto a pista onde circula o tráfego veicular é de responsabilidade total da administração municipal, na grande maioria das cidades brasileiras, a construção e a manutenção das calçadas cabe ao proprietário de cada lote. “A prefeitura define como devem ser as calçadas, levando em conta aspectos como rampa e declividade. Embora ela deva fiscalizar o cumprimento dessas normas, o que acontece na prática é que o morador acaba se apropriando das calçadas das mais diversas formas. Na grande maioria das vezes, as prefeituras não têm equipe suficiente para fiscalizar”, afirma Malatesta.

Silvia Stuchi, ativista pela mobilidade a pé.

Foto: Paulo Pampolin/divulgação

A diretora do projeto Como Anda, Silvia Stuchi, destaca a importância do fortalecimento às ações de participação popular nos debates relacionados à mobilidade ativa nas cidades. “Vemos gestores que desenvolvem seus planos e programas pensando no período de gestão, sem continuidade, que acaba dependendo da agenda da política partidária, das prioridades escolhidas por cada governo. Por isso, é muito importante fortalecer os espaços de participação social para falar especificamente de mobilidade e também os espaços intersetoriais, que envolvem outras áreas”, afirma.


A ativista pela mobilidade a pé frisa que o debate das calçadas é atravessado por demandas que são de todos os componentes de uma sociedade, como saúde, segurança pública e meio ambiente. A caminhabilidade é facilitada, por exemplo, pela existência de mobiliário urbano e praças, que criam uma situação de maior conforto nos deslocamentos, possibilitando paradas para descanso. A arborização adequada também torna o caminhar mais agradável. Além disso, postes como iluminação adequadamente instalados nas calçadas melhoram a segurança pública, que também influencia a escolha de caminhar pela calçada”, coloca.


Stuchi destaca ainda que a Organização Mundial da Saúde (OMS) promove anualmente, no dia 24 de junho, o Dia Mundial de Prevenção de Quedas e que, boa parte delas, possui relação com passeios públicos irregulares. “É um sinistro de mobilidade e ele nem é contabilizado como ocorrência de trânsito. A gente tem essa vertente da saúde pública que é vinculada a quedas e aos milhões que elas custam aos cofres públicos. Além disso, a OMS recomenda uma média de 150 minutos de atividade física por semana e isso poderia incluir a caminhada”, defende a ativista.

Desafio é integrar calçadas a outras iniciativas

Para a professora de arquitetura e urbanismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Clarissa Duarte, há décadas o Recife vem enfrentando ora a ausência total de políticas de mobilidade ativa e melhoria efetiva dos passeios públicos, ora políticas públicas que definem aleatoriamente quais trechos ou ruas serão reabilitados. Em sua percepção, nesse segundo caso, as obras costumam priorizar apenas a mudança de pavimentação ou de sinalização horizontal viária, sem incluir de forma integrada elementos essenciais à caminhabilidade, como a arborização, a iluminação pública, o mobiliário urbano e as interfaces térreas dos lotes que margeiam as ruas. “A vitalidade e integração visual dessas interfaces com a rua, principalmente nas esquinas, é essencial para promover a sensação de segurança para as pessoas, especialmente para as mulheres no período noturno”, afirma.


Assim, a professora destaca que calçadas bem pavimentadas não garantem, sozinhas, as necessidades de segurança e conforto de todos os tipos de pedestres. “Para protegê-los e estimulá-los a caminhar mais é essencial repensar a rua como um todo, sobretudo a velocidade máxima permitida para os veículos motorizados. ‘Zonas 30’, como já se sabe e se aplica no mundo inteiro, são políticas de segurança pública de baixíssimo custo e rápida execução”, comenta.


Duarte lembra que a França, por exemplo, já trabalha na implementação das chamadas “Zonas de Encontro”, conforme são chamados os trechos de rua em que a velocidade máxima permitida é de 20 km/h. Geralmente, a estratégia vem sendo utilizada nas proximidades de escolas e em áreas centrais de grande fluxo de pessoas, garantindo maior segurança sobretudo para crianças e idosos. “No Recife, nunca foi tão urgente investir em pedagogia urbana e ambiental para ressignificar a nossa ‘percepção estreita’ e desintegrada do caminhar e do pedalar. Enquanto reduzirmos a caminhabilidade apenas a um ‘caso’ de pavimentação de calçadas, menosprezando a importância de rotas e travessias seguras para pedestres e ciclistas, dificilmente alcançaremos a qualidade global das ruas e sua valorização enquanto espaços de vitalidade, coexistência e saúde urbana”, conclui.

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