Pedestres por necessidade

Uma pesquisa contratada pela Urbana-PE mostra que o transporte público no estado está perdendo passageiros; usuários não estão mais conseguindo arcar com o preço das passagens

Com os pés calçados de chinelas de borracha, o autônomo José Lins da Paixão, de 64 anos de idade, ziguezagueia pelas primeiras poças d’água de um dia de chuva na comunidade de Caranguejo Tabaiares, na região central do Recife. Desempregado há sete anos, ele sobrevive da ajuda dos filhos e de uma espécie de pequeno mercado familiar improvisado na varanda de casa - onde os vizinhos compram refrigerantes, alimentos e materiais básicos de higiene. Com o objetivo de comprar os produtos que abastecem o negócio, José caminha cerca de 4 km por dia para ir e vir do Mercado de Afogados. Os baixos lucros do mercadinho não permitem que o deslocamento ocorra de ônibus.

Conhecido na Caranguejo Tabaiares como Marcelo, nome que herdou do falecido irmão, José começou a trabalhar aos nove anos, para complementar a renda de sua família. “Comecei vendendo bolinhos que minha mãe fazia e trabalhando como ajudante de pedreiro e sapateiro. Aos 16 anos, comecei a trabalhar em padaria”, diz. Em 2015, ele foi demitido de seu último emprego de carteira assinada, como porteiro de um prédio residencial no bairro do Rosarinho, área nobre do Recife. “Tenho uma saúde perfeita, mas, nesse país, o pessoal acha que uma pessoa da minha idade não tem mais condições de trabalhar. Agora, venho vivendo pela misericórdia de Deus. Em casa, somos eu e minha esposa, quatro filhos que trabalham como ambulantes no sinal, uma filha que é diarista e outra que conseguiu um emprego recentemente”, conta.

Sem condições financeiras de consumir carne nos últimos anos, José diz que a indisposição que enfrenta para fazer os deslocamentos diários é grande. “Quando a gente pode, compra uma mistura ou uma sardinha, mas carne mesmo já não sei nem o que é. Levo 20 minutos para ir para o mercado e 25 minutos para voltar. Nessa hora, o cansaço é maior”, afirma.

“Antigamente, a gente trabalhava em um dia para comer no outro. Agora, aquilo que a gente ganha num dia de trabalho é para comer no mesmo dia. Como a gratuidade nos ônibus é só para gente com 65 anos ou mais, eu teria que gastar R$ 8,20 com passagens para ir e voltar de Afogados. Para eu ter essa condição financeira, só cortando algo da mesa”, lamenta.

Calçadas de Afogados são obstruídas por carros e pontos de alagamento.

Foto: Chico Peixoto LeiaJá Imagens

Pelo caminho, calçadas obstruídas e veículos em alta velocidade na via principal dificultam o percurso. “É incrível como a CTTU [Autarquia de Trânsito e Transporte urbano] e o Detran [Departamento Nacional de Trânsito] não veem a quantidade de carros que as autopeças deixam nas calçadas, obrigando o pedestre a ir pro meio da pista. Às vezes dá uma angústia e até ira”, desabafa. Vez por outra, a buraqueira no passeio público também provoca topadas. “Quando chove, o nível da água sobe e você já não sabe em quais locais da calçada estão os buracos. Fica perigoso, mas tenho a necessidade. Se eu não for, quem é que vai por mim?”, frisa.

Em 2021, uma pesquisa apresentada pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de Pernambuco (Urbana-PE) apontou que o transporte público por ônibus na Região Metropolitana do Recife está perdendo passageiros. A partir da análise de dados sobre transporte público, evolução do uso e ocupação do solo na RMR entre os anos de 2007 e 2018, o estudo concluiu que a queda da demanda de passageiros está associada ao tempo gasto nos deslocamentos e ao valor da tarifa.


Os modelos desenvolvidos através dos dados coletados indicam que, para cada aumento do tempo médio de viagem de 1%, o número de passageiros diminui em 0,43%. Por sua vez, uma elevação do valor da tarifa na ordem de 10% reduz a demanda de usuários entre 3,89 e 5,95%. O relatório também aponta para uma queda contínua da demanda a partir de 2012, a uma taxa média de 1.750.000 passageiros mensais por ano.

Demanda por ônibus
caiu na RMR

Com trena e prancheta em mãos, Jéssica foi às ruas com a ajuda de uma assistente para realizar as medições, documentando as características das calçadas da capital pernambucana, notificando os passeios que apresentassem irregularidades relacionadas a degraus, largura, rampas, inclinação, obstáculos, iluminação, paisagismo e arborização, além de sinalização. A Avenida Boa Viagem, na Zona Sul, por exemplo, conta com o passeio público mais bem avaliado da cidade, enquanto a calçada do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, na Zona Oeste, foi considerada a pior.


Os dados podem ser acessados pelo público em um mapa interativo disponibilizado pela campanha. De acordo com a arquiteta e urbanista Marília Hildebrand, que atuou como coordenadora nacional do Calçadas do Brasil, a pesquisa levou em consideração apenas as calçadas mantidas diretamente pelo poder público. Tais equipamentos receberam notas, em uma escala de zero a dez, com base na observação de quatro critérios: sinalização, acessibilidade, segurança e conforto para o pedestre. “Nenhuma das capitais conseguiu chegar a uma média mínima aceitável de oito pontos. Observamos que a média nacional foi de 5,7 e que mesmo a capital melhor avaliada, São Paulo, ficou abaixo da nota mínima, com 6,93 pontos”, comenta.

Elaborado por um conjunto de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o trabalho apresenta sugestões para que a queda da demanda por ônibus seja superada. “É necessário um novo modelo de financiamento dos serviços, no qual o usuário não seja o único a arcar com os custos do transporte, bem como investimentos públicos em infraestrutura, com a radical transformação na prioridade ao transporte público no espaço viário, uma rede flexível mais adequada às transformações da demanda e uma política pública de ajustes finos na relação entre o uso do solo e o transporte”, explica o professor do departamento de Engenharia da UFPE Oswaldo Lima Neto, um dos responsáveis pelo relatório.

Ou as passagens,
ou o pão na mesa

Comunidade de Três Carneiros praticamente não conta com calçadas.

Foto: Júlio Gomes LeiaJá Imagens

A faxineira Patrícia Maria da Silva, de 38 anos, reside com o marido e os três filhos na comunidade de Três Carneiros, na Zona Sul do Recife. No momento, sua renda é proveniente de três faxinas que realiza por semana, cada uma pelo valor de R$ 60 reais, na comunidade vizinha, a UR-3. “A patroa me dá o dinheiro das passagens, mas prefiro usar para comprar pão. Vou e volto ‘de pés’ e não peço carona porque tenho medo de levar um não na cara. Saio daqui às 7h40 e chego lá às 8h15”, relata.


Segundo a diarista, o esforço físico do deslocamento a obriga a conviver com expedientes duplamente desgastantes. “Já chego cansada, mas é aquilo: primeiramente Deus, depois a barriga, né? Vou pelos cantinhos. Até lá, o caminho é de calçadas quebradas. Fico olhando para o chão para não cair, porque já vi muito acidente nelas”, acrescenta.

Wadja enfrenta lama e buraqueira para manter o tratamento do filho.

Foto: Júlio Gomes/ LeiaJá Imagens

Vizinha de Patrícia, a dona de casa Wadja Diana de Oliveira da Silva, de 31 anos, costuma enfrentar muita lama e sujeira no caminho até a unidade de saúde a que recorre para garantir a medicação do mais velho de seus três filhos, de 12 anos, que foi diagnosticado com autismo. “A gente vive do Auxílio Brasil e do trabalho de pescador do meu marido, que tanto faz tirar R$ 100 em um dia como nada. Como não tenho dinheiro para pagar passagem, eu faço as coisas caminhando. O problema é que aqui não tem calçadas, ou caminho é todo pela pista”, descreve.


Marcada pela presença de morros, Três Carneiros conta com vias estreitas, por onde se espremem ônibus, automóveis particulares e pedestres. “Além da velocidade alta dos carros, ainda tem muito motoqueiro que empina moto. Lá em cima, no terminal, mais de uma pessoa foi atropelada, por causa da confusão de carro e ônibus estacionado enquanto os outros querem passar”, relata Wadja.

Escadarias

Josefa sofre de depressão e ansiedade e desistiu de sair de casa por medo da escadaria que conecta sua rua.

Foto: Júlio Gomes LeiaJá Imagens

A dona de casa Josefa Maria da Conceição, de 64 anos, também critica a situação das escadarias de Três Carneiros, responsáveis pelo acesso à maioria das ruas do local. “Quem fez esse pedaço de escadaria foi o dono da casa da frente. Aí a gente mesmo da rua contratou um pedreiro para terminar, porque ela era toda feita de barro. Mesmo assim, os degraus são tão grandes que a pessoa precisa subir de ‘quatro pés’ e também não tem um corrimão para eu me segurar”, conta. O medo de levar uma queda no equipamento improvisado fez com que Josefa praticamente desistisse de sair de casa. “Tenho ansiedade e depressão. Queria sair para dar uma volta, aliviar minha mente, mas olho para cima e desisto”, lamenta.


De acordo com a professora do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Yara Baiardi, assim como a escadaria da rua de Wadja e Josefa, a maioria das escadarias do Recife foram construídas sem qualquer planejamento, pelos próprios usuários. “Cada caso é um caso. A construção da escadaria ideal depende do comprimento da escada e do tamanho do vão a ser vencido. Mais do que isso, essas escadas precisam ser pensadas com soluções para questões como iluminação, presença de rampas e drenagem urbana efetiva. Nesse último aspecto, é interessante observar que as escadas, que têm uma função de conexão, acabam servindo também para drenagem urbana”, frisa.

Escadaria da rua de Josefa e Wadja não possui calha ou espaço adequado para que a água corra.

Foto: Júlio Gomes LeiaJá Imagens

A professora menciona o exemplo das escadas hidráulicas, como boas soluções para o escoamento de água em escadarias urbanas. Podendo ser construída em paralelo à escadaria pela qual passam os usuários, a estrutura com degraus permite que as chuvas, por exemplo, sejam melhor dissipadas, sendo bastante útil em áreas de morro. “Outra iniciativa interessante seria a construção de réguas laterais para o pneu da bicicleta. Assim, o ciclista que vive em área de morro não precisa suspendê-la para descer ou subir longas escadarias. As réguas existem, por exemplo, em Copenhague, na Dinamarca”, ressalta.


Para Baiardi, mais do que revitalizar, é preciso ressignificar as escadarias urbanas. “É possível trabalhar com o grafite, com a comunidade, o sentimento de pertencimento ao lugar. A gente tem que começar a olhar para a rua como nossa, como algo que é de todo mundo”, afirma. A professora defende ainda que é necessário, além de revitalizar as escadarias já existentes, estimular a construção de novos equipamentos. “Eles são fundamentais, por mais que não tenham qualidade projetual e degraus confortáveis, para a micromobilidade das cidades. Essas escadarias têm uma função urbana na qualidade dos deslocamentos em áreas de morro. São articuladoras cuja ausência compromete a mobilidade dos pedestres”, completa.

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