Cultura do desperdício intensifica a fome
no Brasil

Toneladas de alimentos são jogadas no lixo por supermercados, em casas e durante a produção. Por isso, reaproveitar e doar são os pilares para reverter os índices de insegurança alimentar.

Texto: Victor Gouveia

Imagens: Júlio Gomes

Mais de 61 milhões de pessoas estão com dificuldade para se alimentar no Brasil e o país vive o paradoxo de produzir muita comida ao mesmo tempo em que uma quantidade generosa de brasileiros tenta sobreviver contra a fome. A maior parte do alimento que deveria chegar às mesas é descartado nas etapas de produção, realidade que reforça a importância de combater a cultura do desperdício.


A Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que o Brasil desperdiça 27 milhões de toneladas de alimentos por ano e cerca de 80% dessa perda ocorre no manuseio, transporte e nas centrais de abastecimento. Há mais de 15 anos atuando em grandes empresas de varejo globais, a engenheira de alimentos Alcione Pereira viu de perto as deficiências da cadeia de produção e teve a ideia de desenvolver uma plataforma focada no impacto social.


“O desperdício tem várias causas. Do ponto de vista da infraestrutura, logística, armazenagem e transporte. A gente tem um transporte de alimentos massivo no Brasil, de grandes distâncias. A gente tem alimentos saindo de São Paulo para o Mato Grosso e do Nordeste para São Paulo. Com esses grandes deslocamentos de centros urbanos você causa muito desperdício”, resumiu.

Redistribuição de alimentos

Com a proposta de oferecer às empresas uma maior eficiência operacional para frear esse desperdício, em 2017, Alcione lançou o Connecting Food. A plataforma ajuda outras empresas a redistribuir os alimentos que seriam jogados fora por meio da conexão entre as sobras e pessoas em situação de alta vulnerabilidade social.


“Muitas empresas já fazem a doação de alimentos, mas o nosso desafio é mostrar como fazer isso de uma forma controlada, monitorada, utilizando tecnologia e gerando dados. A gente dá muito valor às nossas conexões e ao relacionamento humano como fator-chave para que esses alimentos alcancem as pessoas certas”, explicou a profissional.

Com atuação em 112 cidades espalhadas por 12 estados, a foodtech já atendeu 315 organizações e conseguiu redistribuir 6.272 toneladas de alimentos. Ao todo, 10.813.792 refeições foram complementadas nesses cinco anos de atividade.

Cenouras descartadas após deixarem as prateleiras.

Integrante do Comitê estratégico para redução de perdas e desperdícios de alimentos (PDA) do Ministério do Desenvolvimento Social, Alcione lamenta que as políticas públicas de segurança alimentar no Brasil retrocederam aos índices da década de 90. Na sua visão, a legislação deveria oferecer mais incentivos fiscais às empresas para atenuar a negligência com o que não é aproveitado após a produção.

Em 2020, logo após o fechamento temporário de estabelecimentos comerciais em todo o Brasil, foi sancionada a legislação que autoriza e impõe normas para a doação de alimentos. A lei 14.016/20 estabelece regras no repasse do excedente da indústria alimentícia e do que é preparado em universidades, hotéis e empresas. O amparo legislativo amenizou a responsabilidade do doador em relação às doenças transmitidas por alimentos (DTAs), como diarreia, infecções e quadros mais graves.

Mesmo com a facilitação, a doutora em Ciências dos Alimentos, Carla Padilha, reconhece que a cultura de doação ainda se repete. "As empresas têm receio de doar esses alimentos excedentes, sejam industrializados, uma refeição pronta ou in natura, porque pode causar algum dano ao consumidor ou que ele possa ser relacionado mesmo que não tenha causado o problema, mas a comunidade entenda que foi aquele alimento, e aí isso traga problemas judiciais", pontuou.

Domingos Sávio mostra etapa de enlatamento da Sopa Amiga.

Sopa Amiga

No Centro de Abastecimento e Logística de Pernambuco (Ceasa-PE), desde 1997, o projeto Sopa Amiga beneficia, em média, 13.500 famílias por mês com um mix de 28 tipos de insumos doados pelos permissionários após a perda do valor comercial nas prateleiras. Para Alcione, a idealizadora do Connecting Food, a cultura da abundância dos supermercados e o valor estético dos produtos em varejo também influenciam no desperdício. “Se tem uma fruta com uma manchinha, as pessoas já não compram”, descreveu.


O químico industrial responsável pela Sopa Amiga, Domingos Sávio, produz em sua fábrica cerca de 1.000 kg de sopa diariamente. Após ser higienizado e enlatado, o caldo é distribuído para entidades e associações cadastradas, que passam por treinamento e conseguem entregar 5 mil pratos por dia.

“Hoje existe uma perda muito grande na produção brasileira. Se perde em torno de 38%, o que significa que a cada quilo de produto produzido, eu jogo 380 gramas”, calculou o profissional.


O Centro opera com 90 mil toneladas por mês e mantém o índice de perda entre 3% e 5%. Parte desse excedente é doado ainda in natura, o que exige mais agilidade no manuseio pelo tempo de vida curto, como explica Domingos: “das 2.700 toneladas jogadas fora, a gente aproveita muita coisa. Quando recebo uma quantidade muito grande de produtos, o que não vou absolver, a gente já repassa para entidades carentes. Isso faz com que a gente tenha uma diminuição da perda muito maior”.


Pelo menos 40% do que chega à fábrica vai para a sopa. “Eu recolho aqui em torno de 40 toneladas e vou reaproveitar pelo menos 16 mil quilos de produtos que iam ser jogados fora”, contou. Antes de entrar no tacho, os produtos que não perderam o valor nutricional passam por uma pré-seleção, são armazenados em câmara fria, seguem para o corte e o descasque, lavagem e sanitização. “Se o produto apresentar mais de 50% danificado, ele não entra no processo”, explicou o responsável.


A receita demorou seis meses para ser desenvolvida e foi adaptada aos hábitos alimentares do Nordeste. Ela passou a ser reproduzida em outras 12 fábricas espalhadas pelo Brasil. A composição inclui 15 hortícolas que dão sabor ao caldo, que é incrementado com proteína de soja, caldo de galinha, caldo de carne, condimentos e temperos, proteína animal, arroz e macarrão.


“Eu não estou servindo só um prato de sopa. Eu estou servindo uma alimentação. A palavra comer é totalmente diferente de se alimentar. Para comer, eu como qualquer coisa, mas a alimentação é aquela que vai trazer nutrição para você”, reiterou Domingos Sávio.

Ingredientes armazenados para seleção da Sopa Amiga.

Do ponto de vista nutricional, a cientista Carla Padilha acrescentou que a variedade de vegetais faz com que a sopa represente um escudo de proteção contra doenças, inclusive o próprio vírus que causou a pandemia. “Para combater o vírus, a gente precisa estar bem nutrido”, destacou.


“O interessante das sopas é que elas passam por um processo de cozimento. Então, o calor acaba eliminando boa parte das bactérias. A recomendação é que ela seja preparada no mesmo dia da doação e que evite-se requentar a sopa. Outra dica para o preparo é, se ela tiver carne, recomenda-se que essa proteína seja fatiada em uma tábua diferente da que foi utilizada pelos vegetais ou que, pelo menos, essa tábua seja lavada para evitar a contaminação cruzada”, alertou Padilha.

Hortaliças enchem latas de lixo.

Boas práticas e dicas

Outro fator que contribui para o alto desperdício no Brasil é o preparo excessivo dentro de casa. Essa vertente do desperdício também faz parte da cultura da abundância sustentada pelos supermercados. Para incentivar as doações conforme as garantias de segurança alimentar, a especialista elencou boas práticas que devem ser adotadas para a doação:

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