Tem gente com fome:
o retrato do Brasil sem comida na mesa

São milhões de brasileiros que acordam sem a certeza de que irão ter o que comer. Mas essa realidade não foi apenas provocada pela pandemia da Covid-19

Texto: Jameson Ramos

Imagens: Rafael Bandeira

“Trem sujo da Leopoldina/correndo correndo/parece dizer/tem gente com fome/tem gente com fome/tem gente com fome”. Esse é um trecho do poema "Tem Gente com Fome", publicado em 1944, pelo poeta recifense Solano Trindade em seu livro "Poemas d'uma vida simples". Este texto poderia muito bem retratar o ano de 2022, onde o Brasil alcançou patamares da fome que não se via há décadas.


Segundo levantamento realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), em termos populacionais, são 125,2 milhões de pessoas convivendo com o grau de Insegurança Alimentar (IA) leve ou moderada, que é quando há receio de passar fome em um futuro próximo e quando há restrição na quantidade de comida para a família, respectivamente. Além disso, 33 milhões de pessoas residem em domicílios em que falta comida na mesa, ou seja, enfrentam a Insegurança Alimentar no seu nível mais grave, passando fome.

Essa é a realidade de Luciana Enézia de Santana, 40 anos, e de sua família que mora em uma casa simples, de apenas dois vãos, construída em um beco estreito dentro da comunidade do Coque, no bairro de Joana Bezerra, Centro do Recife. Todos os dias, Luciana, que é a chefe do lar, acorda se perguntando o que dará de comer aos seus quatro filhos e dois netos, já que ela e seu esposo estão desempregados, contando apenas com os R$ 400 do Auxílio Brasil pagos pelo governo federal mensalmente até agosto, quando o benefício passou a ser de R$ 600. Desse valor, eles ainda precisam tirar R$ 200 para pagar o aluguel - é com o que sobra que a mulher compra alguns itens de alimento para o seu lar.


"Com o que sobra a gente vai no mercado comprar alguma coisa pra comer, mas não dá pra quase nada. Quando acaba a comida, alguns vizinhos me ajudam ou eu tento arrumar alguma coisa pra não deixar meus filhos com fome. Hoje mesmo só tem pão", diz Luciana.

Se compararmos com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, também publicado pela Rede PENSSAN no ano passado, confirmamos que cerca de 14 milhões de brasileiros entraram em situação de fome em pouco mais de um ano. Para quem acha que a fome não pode ser mais cruel, ela tende a piorar quando "separamos" o Brasil. Em termos geográficos, 25,7% das famílias que passam fome residem na região Norte e 21% no Nordeste.


A Insegurança Alimentar também está diretamente relacionada a outras condições de desigualdade. A Rede Penssan detectou que mais de 6 em cada 10 domicílios (64,1%) com responsáveis do sexo feminino apresentaram algum nível de IA. Destes, 19,3% em situação de fome, que também está presente em 43% das famílias com renda per capita de até 1/4 do salário mínimo, atingindo mais as famílias que têm mulheres como responsáveis e/ou aquelas em que a pessoa de referência (chefe) se denomina de cor preta ou parda.

Morando sozinha em uma casa de palafitas, à beira do Rio Capibaribe, tudo o que tem na residência de William Maya, 40 anos, foi conseguido por meio de doações. E é assim, contando com a caridade do próximo que ela tenta, todos os dias, colocar comida no prato. Isso porque ela está sem os seus documentos, o que dificulta que consiga solicitar o Auxílio Brasil. Sem estudos e oportunidades, não encontra outra alternativa a não ser ir para as ruas pedir.


“Eu vivo em uma situação muito difícil. Vivo 'encharcando' as pessoas pra conseguir trazer alguma coisa para casa. Esta semana eu consegui comprar um pacote de arroz, macarrão e feijão e vou sobrevivendo assim, com o que os outros me dão. Minha vida é sair cedo pra pedir”, lamenta.


Com os olhos marejados e vergonha de mostrar o rosto, William ainda encontra motivos para agradecer a Deus e acredita que se não fosse sua fé e a solidariedade das pessoas, não saberia o que seria da sua vida. “Eu moro aqui [na comunidade do Coque] desde que eu era pequena. Não tenho estudo e nunca consegui trabalhar de carteira assinada. Hoje em dia, até por conta da minha idade, está muito difícil conseguir até uma ‘oia’ [trabalhos temporários]”, aponta.

Na comunidade do Coque, localizada na área central do Recife, a população mal tem dinheiro para comprar comida.

Pandemia foi agravante,
mas fome já vinha crescendo

A pandemia da Covid-19 foi responsável por agravar a fome no Brasil, mas é um erro colocar toda a culpa apenas neste período pandêmico, iniciado em março de 2020 no país. O desmonte das políticas públicas, a piora da crise econômica e política do país, alinhados com o aumento das desigualdades sociais, também contribuíram para que chegássemos ao patamar atual.


Um exemplo desse desmonte é no que se transformou o que era o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, criado em janeiro de 2004, no Governo Lula. A pasta tinha a missão de promover a inclusão social, a segurança alimentar, assistência e uma renda mínima de cidadania às famílias que viviam em situação de pobreza.


Quando assumiu a presidência em 2016, Michel Temer editou uma medida provisória extinguindo o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que foram fundidos e passaram a ser Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário - um sinal de como a questão da fome iria ser tratada a partir dali.


Já nos primeiros anos do governo Bolsonaro, foi criado o Ministério da Cidadania, que se tornou responsável pela política nacional de segurança alimentar e nutricional e criou a Secretaria Especial do Desenvolvimento Social para gerir essas questões.

Cronologia

Em 2004, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os resultados do levantamento suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre Segurança Alimentar, realizado em convênio com o, então, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), foi a primeira vez que o IA foi investigado em todo o país pelo órgão.


Naquele ano, 72 milhões de pessoas viviam em domicílios onde a condição de Segurança Alimentar era considerada leve, moderada ou grave. No recorte da fome, 14 milhões de brasileiros conviveram com ela "em quase todos os dias", "em alguns dias" ou "em um ou dois dias" nos três meses que antecederam o levantamento na época. Por outro lado, 109 milhões de pessoas conviviam com a Segurança Alimentar, tendo acesso à comida.

Em 2009, cinco anos depois da primeira aplicação da EBIA , o número de pessoas que conviviam com algum grau de IA caiu para 65,6 milhões de brasileiros. Do total de entrevistados, 11,2 milhões conviviam com a fome. No entanto, 126,2 milhões de pessoas no Brasil tinham acesso regular à alimentação, convivendo com a SA plenamente.

Em 2013, o Brasil viveu o seu melhor momento no quesito acesso à alimentação por parte da população. No ano, foram 149,4 milhões de pessoas vivendo em situação de Segurança Alimentar. A prevalência de pessoas em situação de IA grave, ou seja, que conviviam com a restrição alimentar atingiu 7,2 milhões de brasileiros.


A insegurança alimentar grave apresentou reduções importantes em relação aos levantamentos anteriores. Esse indicador caiu de 6,9% em 2004 para 5,0% em 2009 e, em 2013, atingiu seu patamar mais baixo: 3,2%.

Saída do Brasil
do Mapa da Fome

No dia 16 de setembro de 2014, o Brasil comemorava a notícia de que tinha saído do Mapa da Fome, segundo relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A FAO considerou dois períodos distintos para analisar a subalimentação no mundo: de 2002 a 2013 e de 1990 a 2014. Segundo os dados analisados, entre 2002 e 2013, caiu em 82% a população de brasileiros em situação de subalimentação.


Na época, o relatório mostrava que o Indicador de Prevalência de Subalimentação, medida empregada pela FAO para dimensionar e acompanhar a fome em nível internacional, havia atingido no Brasil nível menor que 5%, abaixo do qual a organização considerava que um país havia superado a fome.

São pessoas sobrevivendo em condições desumanas e contando, muitas vezes, apenas com o auxílio oferecido pelo governo.

Volta da miséria

Sem a continuidade e/ou valorização das políticas públicas de combate à fome no Brasil, o país viu os números da Insegurança alimentar, em todos os seus níveis, aumentarem. Segundo o IBGE, em 2017-2018, dos 207,1 milhões de brasileiros, 122,2 milhões moravam em casas com Segurança Alimentar, enquanto 84,9 milhões habitavam aqueles com alguma Insegurança Alimentar, assim distribuídos: 56,0 milhões em domicílios com IA leve, 18,6 milhões em domicílios com IA moderada e 10,3 milhões em domicílios com IA grave.


Como retrataram três suplementos da antiga PNAD, a prevalência nacional de Segurança Alimentar (SA) era de 65,1% dos domicílios do país, em 2004, cresceu para 69,8%, em 2009, e para 77,4%, em 2013. Mas a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, que investiga esse fenômeno com a mesma metodologia, mostra que essa prevalência caiu para 63,3% dos domicílios, abaixo do observado em 2004.


A IA leve teve aumento de 33,3% frente a 2004 e 62,2% em relação a 2013. Já a IA moderada aumentou 76,1% em relação a 2013 e a IA grave, 43,7%.

Negação da fome

Mesmo diante de todos esses dados, o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem minimizado a realidade miserável do Brasil. Em entrevistas, o mandatário chegou a apontar que não vê pessoas pedindo "pão" na padaria. "Se a gente for na padaria, não tem ninguém ali pedindo pra você comprar um pão pra ele. Isso não existe", afirmou, ainda completando em seguida: "Fome no Brasil? Fome pra valer? Não existe da forma como é falado".


O professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e cientista político, Arthur Leandro, analisa que negar a realidade do problema é um sinal de exclusão dessa pauta das prioridades nacionais. O especialista aponta que a ação institucional do governo foi basicamente o pagamento do auxílio emergencial em função da Covid-19 e, depois, a sua conversão no novo programa de distribuição de renda, em grande medida motivada pela agenda eleitoral.


“A falta ou a negação da seriedade do problema e da necessidade de ajustar a estrutura do Estado para enfrentar essa questão [da fome] agravou o problema”, avaliou. No entanto, Arthur reforça que o agravamento da fome andou lado a lado com a pandemia e a crise financeira do país, que vê a economia “patinando” há alguns anos.


“Foi uma conjunção de fatores que fez com que voltássemos para o radar da fome mundial e que esse problema tenha retornado com toda a força pra frente do debate nacional, porque um requisito básico do processo civilizatório é o enfrentamento do problema da fome. Nenhum país é civilizado com a sua população passando fome”, pontua.

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