Fome à brasileira: os problemas sociais e a desnutrição infantil

A desnutrição infantil é, também, um problema social ocasionado pela ausência de políticas públicas.

Texto: Alice Albuquerque

Imagens: Chico Peixoto

Condição clínica decorrente de deficiência (ou excesso) de um ou mais nutrientes essenciais, a desnutrição infantil pode ser causada tanto por ingestão insuficiente de alimentos, quanto pela má alimentação. Em resumo, e de modo geral: a desnutrição infantil é o consumo de produtos não saudáveis, segundo o Ministério da Saúde. O problema social, que pode ser ocasionado por vários fatores, como dificuldade financeira e de acesso a alimentos saudáveis, falta de políticas públicas do governo, ausência de atenção dos pais ou responsáveis e até a falta de conhecimento sobre alimentação saudável, é também uma desordem de natureza médica.


A fase que se deve ter uma maior atenção à desnutrição infantil é até os 2 anos de idade da criança, melhor dizendo, os primeiros mil dias de vida. Bebês desnutridos são menos resistentes às doenças comuns na infância e têm o sistema imunológico enfraquecido. No Brasil, 13,78% das crianças de até 5 anos foram atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com peso inadequado entre janeiro e setembro de 2021.


Em Pernambuco, no período de 2020 a 2021, o estado nutricional de crianças menores de 5 anos com peso baixo ou muito abaixo do peso foi de 236.671, em 2020, e 281.701, em 2021. A média apresentada foi de 2,27% e 2,86% de crianças de baixo peso nos respectivos anos, de acordo com dados enviados pela Secretaria de Saúde do Estado. Uma pesquisa divulgada recentemente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre o Mapa da Nova Pobreza revelou que 50,3% dos pernambucanos têm renda per capita familiar abaixo de R$ 497 por mês, ou seja, mais da metade da população, o que significa que mais de 4,8 milhões de habitantes vivem nesta margem, tendo em vista que a população total pernambucana é de 9,6 milhões. Já no País, o índice é de 29,6%, com 62,9 milhões de brasileiros.


Atualmente, nenhum programa de origem do Estado no combate à desnutrição infantil e insegurança alimentar é trabalhado, apenas programas do governo federal, segundo informações enviadas pela Superintendência de Comunicação. Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil (EAAB), Promoção da Alimentação Adequada e Saudável (PNAN), NutriSus, Programa Nacional de Suplementação de Ferro (PNSF), Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A (PNSVA), Programa Auxílio Brasil (PAB) e Vigilância Alimentar e Nutricional são as políticas públicas nacionais realizadas junto aos estados e municípios, todas idealizadas e realizadas pelo governo federal.

O trabalho voluntário para evitar a desnutrição

A Pastoral da Criança, que é um trabalho feito pela Arquidiocese de Olinda e Recife, tem como objetivo a organização da comunidade e capacitação de líderes voluntários para orientar e acompanhar as famílias em ações básicas de saúde, educação, nutrição e cidadania, tendo como finalidade o desenvolvimento integral das crianças. Um dos trabalhos de grande êxito feito pela Pastoral é o “Mil dias e saúde”, que cuida dos primeiros mil dias do bebê desde a gestação (dos 270 dias de gestação até os primeiros 2 anos de vida).


A ação é feita inicialmente com uma procura de gestantes nas comunidades e áreas periféricas da Região Metropolitana do Recife atendidas pelas paróquias próximas às localidades. A atividade das voluntárias e voluntários da Pastoral da Criança é para acompanhar, orientar e ser uma ponte entre a comunidade e os serviços públicos para ajudar as pessoas a terem conhecimento sobre os seus direitos e a cobrar do poder municipal.


Também é realizado um mapeamento de mulheres grávidas “na maioria das vezes sem ajuda de família, precisando de orações, de ouvi-las, com a autoestima abalada e desempregadas”, detalhou a coordenadora da Pastoral da Criança, Ângela Bezerra, informando, ainda, que atualmente a Arquidiocese tem 109 gestantes atendidas. Ela lamentou, no entanto, que o atendimento reduziu “por falta de voluntários para acompanhar, e porque muitas paróquias ainda não estão com a Pastoral da Criança”.

Cassiana Pereira com Isac Levi no colo recebendo acompanhamento da Pastoral Infantil.

Para ser voluntária ou voluntário, basta procurar uma paróquia próxima a sua residência que tenha o projeto da Pastoral da Criança. O voluntariado visita famílias e gestantes, faz a pesagem das crianças, orienta em caso de desnutrição e age para a ação do poder público. Elisângela Cristina, 29 anos, é mãe de Emanuel Valentim, de 6 anos, e Heitor Valentim, de 2 anos.


Ela é acompanhada pela equipe da Pastoral da Criança há mais de três anos. De acordo com ela, que só veio ter o acompanhamento na segunda gestação, o trabalho é essencial. “O meu filho mais novo, Heitor, foi acompanhado desde a gestação. Eu soube do trabalho quando conheci uma pessoa aqui do Habitacional Beira-Rio que a filha fazia parte da Pastoral e me indicou. Ela disse que era muito bom, e tinha o peso [a medição do peso da criança] todo sábado. Ela falou com Eliane e me inscreveu”, disse. Eliane Cunha é uma voluntária da Pastoral da Criança que apresentou o trabalho feito com as visitas à reportagem do LeiaJá, no Conjunto Habitacional Beira-Rio, no bairro do Arruda, Zona Norte do Recife.

Eliane Cunha e Germana Moreira, voluntárias da Pastoral Infantil.

“Eu gosto do acompanhamento. Ela ensina muita coisa para a gente e na gestação foi muito bom, porque ela vê se a gente tá acima do peso, como está o crescimento e desenvolvimento. Ela acompanha a gente. Se a gente tem diabetes gestacional, pressão alta; está sempre orientando o que a gente pode fazer e ensinando técnicas. A Pastoral é uma escola, a gente aprende muito”, enfatizou Elisângela.Já Cassiana Pereira, de 26 anos, mãe de Isac Levi, de 2 anos, também foi indicada por uma conhecida. “É um diferencial para o crescimento da criança. A gente aprende mais as coisas”, relatou.

Registro da criança no aplicativo da Pastoral Infantil para controle.

Cartilha com orientações gerais sobre desnutrição infantil.

Eliane Cunha explicou à reportagem que várias cartilhas são entregues às famílias participantes, uma delas é acompanhada de uma colher com uma receita de soro caseiro para auxiliar em casos de diarreia. Alertas das fases de desnutrição e medidas a serem tomadas pelos pais também fazem parte das cartilhas entregues, com todas as orientações prévias possíveis, assim como o reforço feito pelo voluntariado.

Receita de soro caseiro com medidor, indicado para ser feito em casos de diarréia.

Atualmente, a organização utiliza o aplicativo “Pastoral da Criança”, disponível na PlayStore. No entanto, além de fazer os registros no aplicativo, Eliane mostrou que ainda faz o uso de um livro, pois ela acha melhor na dinâmica das visitas. Tanto o aplicativo quanto o livro contém informações sobre a criança e a gestante, além das cartilhas nele anexadas com as orientações.

Registro da criança no aplicativo da Pastoral Infantil para controle.

Cartilha com orientações gerais sobre desnutrição infantil.

O olhar dos agentes comunitários

Assim como a Pastoral da Criança, ao lado da população com o objetivo de promover a saúde e prevenção de doenças com foco em atividades educativas em saúde, em domicílios e coletividades, o agente comunitário de saúde é o profissional que está dentro da comunidade para realizar a integração dos serviços de atenção básica com a comunidade.


Por estar perto da comunidade e das pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, a agente comunitária de Saúde, Ana Patrícia Alves, que trabalha na área de Jaboatão dos Guararapes/Jardim Piedade, contou que ainda são encontrados muitos casos e relatos de desnutrição infantil em Pernambuco. “Hoje as crianças comem muitos alimentos industrializados e de baixo valor nutricional porque são mais baratos e fáceis de fazer”, informou. A profissional explicou que o trabalho é feito a partir de visitas mensais nas residências, começando no pré-natal, puericultura, e vai até os 5 anos de idade da criança. “Nós acompanhamos a saúde como um todo: nutricional, psicológica, e o ambiente que essas crianças vivem. Também orientamos as mães”, disse.


Ana Patrícia começou a atuar como agente comunitária em 2007, e salientou que, na época, as condições das famílias eram melhores: “As famílias tinham mais acesso aos mais variados alimentos. Hoje, com o aumento do custo de vida, está mais difícil e as famílias não conseguem ter acesso a uma alimentação de qualidade nutricional”. De acordo com ela, os casos de desnutrição são identificados nas reuniões de equipe com a presença do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Em seguida, é marcada uma consulta com a nutricionista para fazer a orientação e acompanhamento junto à equipe.

A importância do

acompanhamento nutricional

Para desmistificar os problemas decorrentes da desnutrição na infância, a nutricionista materno infantil e especialista em nutrição clínica e doenças crônicas, Deisy Tolentino, explicou à reportagem do LeiaJá que a criança deve ter o crescimento e desenvolvimento acompanhados regularmente por profissionais de saúde. As consultas periódicas servem para identificar critérios e/ou situações de risco nutricional que possam vir a comprometer o desenvolvimento e crescimento infantil, por ser uma fase de extrema necessidade de nutrientes e que “um déficit na alimentação pode causar problemas no sistema nervoso e no sistema nervoso central”.


“São os nutrientes, ou o adequado aporte de nutrientes, os responsáveis para que o sistema nervoso se desenvolva e então a criança ganhe em desenvolvimento neurológico e desenvolvimento cognitivo”, disse Deisy Tolentino. A especialista lembrou que tanto a desnutrição quanto outras doenças continuam existindo no Brasil, “seja em grupos populacionais que têm dificuldade em produzir ou adquirir seus alimentos, seja por meio de violação de direitos básicos pelas condições socioeconômicas, conflitos pela posse de terras ou outros fatores”.


“Porém, mesmo nas realidades em que o alimento está presente, as deficiências nutricionais podem acontecer pela inadequação da alimentação ou pela presença de doenças. Para a prevenção da desnutrição, a alimentação adequada e saudável é essencial para garantir o pleno crescimento e desenvolvimento, com ênfase nos primeiros mil dias de vida, que englobam o período gestacional e os primeiros dois anos de vida da criança”, avaliou a nutricionista. A importância do acompanhamento nutricional foi evidenciada por Tolentino, sobretudo durante o pré-natal da mãe, e que inclua “outros aspectos relevantes ao desenvolvimento infantil, como a saúde emocional da mãe, o apoio que ela encontra nos familiares, no trabalho, na escola e na comunidade”.


“O pré-natal deve começar assim que a mulher descobre que está grávida. Através desse monitoramento, é possível fazer o acompanhamento, o diagnóstico e o tratamento de doenças pré-existentes ou das que podem surgir durante a gravidez”, afirmou. “A desnutrição ou o ganho de peso insuficiente na gestação podem levar ao baixo peso ao nascer, condição essa que envolve prejuízos no crescimento e desenvolvimento, além de deficiências imunológicas na criança e o aumento na chance de parto prematuro”, emendou.


A especialista detalhou que a desnutrição é uma doença de natureza clínico-social multifatorial, ou seja, “é um problema de saúde pública que acomete especialmente pessoas de maior vulnerabilidade social e biológica”. “Quando ocorre na primeira infância, está associada ao maior risco de mortalidade, à recorrência de doenças infecciosas (diarreicas e respiratórias), a prejuízos no desenvolvimento psicomotor, a um menor aproveitamento escolar e à menor capacidade produtiva na fase adulta”. No entanto, o tratamento da desnutrição não é aumentando as refeições e porções durante o dia, explicou. “É necessário identificar o estado de saúde. Caso seja grave, é preciso recuperar os sinais vitais, hidratar e controlar a pressão.


Em um segundo momento é possível focar em uma dieta hiperproteica, hipercalórica, repor vitaminas e minerais. A renutrição deve ser bem esquematizada e lenta, devido a incapacidade de absorção dos alimentos, e o acompanhamento multiprofissional e familiar é essencial”. A nutricionista chamou atenção para o aumento da insegurança alimentar e nutricional no Brasil, que indica um maior número de famílias sem acesso regular e permanente a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficiente.


“Atualmente, mais de 700 mil crianças menores de 5 anos têm algum problema de desnutrição, pois muitas estão com o peso a altura bem abaixo do ideal, comprometendo o seu desenvolvimento de forma considerável. Diante do agravamento da situação de insegurança alimentar no País, o desafio de gestores, profissionais e toda a sociedade civil é pensar e articular ações que sejam capazes de garantir a Segurança Alimentar e Nutricional e o Direito Humano à Alimentação, importantíssimas no enfrentamento do problema”, destacou Deisy Tolentino.

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