Reportagem Marília Parente

A GUARDIÃ DO BORDADO MANUAL EM PASSIRA

Publicado em 29 de junho de 2022.

Silêncio da noite e, no travesseiro, a cabeça cheia de rosas, texturas e fios coloridos. É antes de dormir que a mestra bordadeira Lúcia Firmino sonha com os desenhos que colocará no tecido no dia seguinte. “É muito ruim a pessoa ser triste, por isso não penso. Imagino o que vou fazer amanhã”, comenta.


Aos 66 anos, ela ainda é a principal fonte criativa dos motivos que serão impressos nos bordados produzidos pela Associação das Mulheres Artesãs de Passira (AMAP), no Agreste de Pernambuco. O grupo conta com 60 bordadeiras, tendo a maioria delas aprendido o ofício com a mestra Lúcia.


“Meu pai era agricultor, plantava milho e feijão, e minha mãe era bordadeira. Eu estudava e quando estava em casa ficava sempre junto com ela, bordando. Na época, todo mundo sonhava em ser professora, mas não tinha magistério em Passira. Com muita dificuldade, eu e minha mãe pagamos meus estudos fora da cidade com o dinheiro do bordado. Sem ele, eu não teria conseguido”, lembra a mestra.

Mestra Lúcia é responsável por conceber o desenho da maior parte dos bordados feitos na associação.

Foto: Rafael Bandeira

Nessa época, o talento para a docência que lhe garantiria uma carreira de 33 anos como professora primária, já havia se manifestado na costura. Ainda aos 14 anos, Lúcia começou a oferecer as primeiras aulas de bordado, para vizinhas e amigas interessadas, sem qualquer contrapartida financeira. “Até hoje, eu ensino. O pessoal passa pela Associação, marca comigo e vem aprender. Só cobro de volta o compromisso de repassar para outras pessoas interessadas. Eu fico preocupada, porque já vi muitas bordadeiras irem embora. Se não passar para outras pessoas, não vai acabar?”, questiona.

No artigo científico “1980: uma década para ficar na história do bordado de Passira-PE”, da mestre em história social da cultura regional pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Isabella Karim Morais Ferreira de Vasconcelos, o período é apontado como a época de maior notoriedade do artesanato da cidade. A pesquisa justifica que foi nos anos 1980 que surgiu a Feira Artesanal de Passira, posteriormente transformada em Feira do Bordado Manual de Passira, e o setor passou a contar com maior divulgação do poder público. Não é à toa que, em 1986, Passira, até então conhecida apenas por ser a maior produtora de milho de Pernambuco, ganha uma placa na entrada da cidade com os dizeres “Terra do Bordado Manual”.

Associação das Mulheres Artesãs de Passira (AMAP).

Foto: Rafael Bandeira

“Aqui, onde você visse uma mulher, tinha bordado. Em todas as calçadas. Não sei quando começou, minha mãe sempre dizia que tinham sido umas senhoras do Recife que começaram a ensinar o povo de Passira a bordar e que, depois, as mães foram passando para as filhas”, lembra Lúcia.


Para a mestra, a arte têxtil vem perdendo força no município, em razão da desvalorização do artesanato e da falta de apoio do poder público na divulgação da produção. “Tem muita gente que sabe bordar, mas tem medo de fazer porque não tem a quem vender. O Centro Cultural [e Comercial do Bordado] passou muito tempo sendo centro do lixo e da covid, ainda não foi reformado. Deveria ter um espaço para as bordadeiras e para aulas de bordado”, acrescenta.

Com exceção da mestra Lúcia, a bordadeira Damires Cavalcante, de 19 anos, é a única associada da AMAP que domina a complexa arte do desenho para o bordado. O risco original precisa caber na peça a ser elaborada, na qual é inicialmente impresso com uso de pedra de anil e óleo vegetal, que funcionam como uma espécie de tinta azul. Em seguida, a bordadeira preenche a gravura e lava o tecido. O bordado ainda é endurecido com uma antiga técnica que envolve o contato do pano com a goma de tapioca. “Gosto muito de fazer roupas para recém-nascidos, são artigos muito procurados. Tento criar um desenho mais moderno, sem deixar de lado nossa tradição. Crio desenhos mais delicados, sem as rosas tradicionais, que são muito grandes”, comenta.

Renovação

Aos 19 anos, Damires tenta aliar modernidade à

tradição do bordado passirense.

Foto: Rafael Bandeira

Embora tenha aprendido a bordar com a mãe, aos 11 anos, Damires ressalta que os conhecimentos adquiridos na associação vão além das técnicas artesanais. “Se um dia eu resolver sair daqui para criar um negócio meu, acho que vai dar tudo certo, graças aos ensinamentos de Dona Lúcia. Ela se esforça bastante para ajudar as bordadeiras, por isso estão chegando muitas bordadeiras novas para trabalhar com a gente”, pontua.

Apesar da movimentação de jovens na associação, a bordadeira Vitória Silva dos Santos, também de 19 anos, frisa que o interesse das novas gerações pelo bordado está aquém da relação histórica de Passira com o bordado. “Muito por sua pouca visibilidade, ele acaba ficando para as pessoas mais velhas, que focam em produzir peças como jogos de cama ou cozinha, que não vão ser do interesse da juventude. Se a gente atualiza o bordado para uma calça, um cropped, chegando mais junto da moda, acho que os jovens se interessam mais”, opina.

Bordadeira Vitória dos Santos acredita na moda como um

caminho de renovação para o bordado.

Foto: Rafael Bandeira

Em 2010, por meio de um projeto da antiga Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (aDDiper), atual Adepe, a AMAP desenvolveu quatro coleções com o renomado estilista mineiro Ronaldo Fraga. “Ronaldo passou uns dias aqui com a gente desenvolvendo esse trabalho. A gente já tinha feito blusas de cambraia bordada, mas ele mostrou que a gente tinha capacidade de fazer coisas diferentes. Bordamos monumentos, rostos, até sereia teve”, conta Lúcia Firmino. Uma das coleções, intitulada “Turista Aprendiz”, chegou a ser apresentada na passarela da Bienal da Moda, em São Paulo. “Foi uma badalação medonha, coisa que a gente só tinha visto na televisão. Fomos assistir, eu e mais três, na primeira fila. Uma emoção muito grande, a gente viu que a gente era importante e que o povo gosta do que fazemos”, celebra a mestra.


Um segundo projeto, executado em 2014 através de um financiamento coletivo, ofereceu capacitação na área de informática para as bordadeiras, bem como etiquetas próprias e um site para a AMAP. “São coisas que vão modernizando nosso trabalho. Tem bordadeiras que passam a vida inteira fazendo a mesma coisa, cama e mesa, aí não foram adiante. Quando chega uma pessoa nova aqui, a primeira coisa que digo é: 'você é artista, vai ter que mudar sua arte, fazê-la sempre de maneira diferente, porque se a gente não mudar, os olhos das pessoas vão se cansar'. A gente tem que tocar as coisas pra frente, é igual viver", conclui.

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