"Desde que me entendo por gente faço renascença", começa o discurso. "Durante muitos anos vi o fruto do meu trabalho ser desprezado como se fosse segundo plano. E até tinha o sentimento de que a pessoa que comprava minhas peças estava me fazendo um favor. Imaginem só: alguém agradecer a Deus porque outra outra pessoa comprava o fruto da minha arte. Depois de ser humilhada ainda agradecer...", continua o texto lido por Maria do Socorro em junho de 2021. Na ocasião, ela concluía um curso voltado para qualificação de rendeiras dos municípios de Pesqueira e Poção, no Agreste de Pernambuco.


"Não só faço um pano cheio de traços. Não é isso. Eu faço teias, gero conexões, crio redes, produzo relacionamentos", continuou Socorro ao microfone. Um ano depois desse discurso, neste mês de junho de 2022, ela e outras rendeiras da associação Cheia de Graça lançavam pela primeira vez uma coleção de roupas feitas com a técnica da renda renascença.


A Associação Cheia de Graça existe há 21 anos e conta com 15 integrantes. Todas produzem peças em renda renascença, estilo têxtil de grande importância histórica e cultural no estado, além de se tratar de uma potencialidade econômica. O artesanato é feito com linha, agulha e lacê (fita com pequenos furos nas laterais que sustenta a trama). Estudos indicam que o ofício surgiu na Itália entre 1400 e 1600. No Agreste pernambucano, chegou na década de 1930.


Na vida de Maria do Socorro, chegou quando ela tinha oito anos. A mãe dela sabia tecer, mas não queria ensinar. "Quando ela ia para a cozinha, eu pegava a almofada e ficava lá tecendo. Ficava uma bagunça, aí ela viu que eu precisava aprender mesmo", lembra. Sem luz elétrica, na zona rural de Pesqueira, a pequena Maria do Socorro fazia renda à luz do candeeiro.


Foi em um auditório bastante iluminado em Caruaru, também no Agreste pernambucano, em 11 de junho, que mais de 50 modelos desfilaram apresentando a coleção criada por Maria do Socorro e várias rendeiras. A coleção intitulada Tulipas conta com 30 peças.


"Tem de tudo um pouco. Peças casuais, de festa, short, saia, cropped, vestido de festa, de noiva", cita Maria Ivoneide, presidente da associação. Ela aprendeu renda renascença aos nove anos com as vizinhas e trabalhou com o ofício em uma fábrica por 18 anos.


A coleção foi fruto de uma capacitação realizada pelo Senac Caruaru, em parceria com a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe) e Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pesqueira. O objetivo do projeto era capacitar em moda as mulheres da renda renascença, indo além do artesanato.


"A renascença não era conhecida como moda. Nós somos as pioneiras em enfrentar isso, é a primeira associação a conseguir um projeto que valoriza a renda renascença como moda", reforça Maria Ivoneide.


O projeto totalizou mais de 260h de capacitação. Segundo Maria Ivoneide, foi um desafio convencer as integrantes da associação a participar. A Cheia de Graça, que chegou a contar com 25 participantes, estava sofrendo o impacto da pandemia, que as forçou a parar de vender. “Foi muita luta pra poder a gente voltar a se encontrar, se reunir mensalmente. Era um medo muito grande.”


Quando começaram a estudar, tudo mudou. "Elas são outras hoje, a cabeça está muito diferente. Elas começaram a acreditar mais nelas, são mais confiantes, têm mais esperanças, mais fé. De modo geral, empoderadas em todos os sentidos”, diz Maria Ivoneide. Ao longo do curso, as rendeiras estudaram temas como planejamento e desenvolvimento de coleção, moulage, costura, gestão de preços, marketing, gestão de redes sociais e planos de comunicação, inclusive lançando um site novo.

Ângela Maria, Maria Ivoneide, Jucelina Feitosa,

Maria do Socorro e Maria Ivonete.

Foto: Rafael Bandeira

“Os maridos não gostaram da ideia de verem elas saindo, entendeu?”, conta a presidente da associação. “Aconteceu de uma delas chegar e dizer 'Meu marido disse que não era para eu vir'. Ele disse 'amanhã você não vai', aí ela 'tá certo'. No outro dia ela se arrumava e ia embora para cá", acrescenta.

"Meu marido diz que a renascença não tem futuro. Ele não gosta muito porque eu tenho que sair de casa", relata a rendeira Ângela Maria. Integrante da associação, ela tece desde que tinha 10 anos. Aprendeu só em ver a irmã fazer. "Eu digo a ele que não vou parar, porque estou fazendo o que gosto."

“Eu creio que através dessa coleção a gente pode ter outras oportunidades e conseguir uma saída”, projeta Maria do Socorro, que assumirá a presidência da associação em breve. As peças serão comercializadas na Loja de Moda Autoral de Pernambuco (Mape), que funciona ao lado do Centro de Artesanato de Pernambuco, no bairro do Recife, área central da capital.

Maria do Socorro fala em procurar uma saída não à toa. Apesar do fôlego gerado entre as rendeiras com o lançamento da coleção, há um desencanto entre essas profissionais.

“A renda renascença desvalorizou muito”, comenta a associada Jucelina Feitosa. “Eu não tenho esperança de ver a renda valorizada. As pessoas não têm mais aquele prazer de fazer. As jovens de hoje não querem mais aprender. As pessoas que faziam estão com idade avançada e já não fazem mais. Eu tenho medo que a renda acabe”, ela resume.

Todas as rendeiras de Pesqueira entrevistadas carregam no discurso o medo de que a renda renascença esteja acabando e afirmam que o dinheiro ganho é muito baixo. Em sua dissertação de mestrado intitulada 'RENASCENÇA: representação histórica, social e visual do fazer renda em Pernambuco', de 2017, a pesquisadora Ana Flávia da Fonte Netto de Mendonça faz um levantamento com 69 artesãs de Poção, município vizinho a Pesqueira e berço da renda renascença no estado. Alguns resultados sobre a situação do ofício na cidade são exibidos nas tabelas abaixo.

Os dados evidenciam, entre outros aspectos, que a maior parte das entrevistadas ganha até R$ 200 por mês (65%), o que faz com que o ofício não ocupe lugar de destaque na renda familiar; tem acima de 30 anos (81%), indicando que as mais jovens não estão interessadas na carreira de rendeira; e estudaram até a 4ª série do 1º grau (46%) ou da 5ª a 8ª série do 1º grau (26%), tendo contato muito curto com o sistema de educação formal.


Maria do Socorro também é coordenadora da tradicional Feira da Renascença de Pesqueira, realizada todas as quartas-feiras. Ela comenta sobre o perfil das frequentadoras. "A maioria são mulheres que moram na roça, são agricultoras dos sítios. A maioria são pessoas humildes que vivem da agricultura e faz a renda para poder ajudar nas despesas de casa.”


Apesar de ter sido responsável por inserir muitas mulheres de Poção e Pesqueira no mercado de trabalho, a renda renascença tem sobrevivido principalmente pelo amor das artesãs a esse ofício. As entrevistadas alegam que as pessoas não querem pagar um preço justo pelas peças. "Você passa um mês para fazer uma blusa, pede R$ 600, R$ 700, o povo acha um absurdo", conta Maria Ivoneide. "Na feira, eu vejo as mulheres vendendo por R$ 200 uma peça igual a minha que eu estou cobrando R$ 500", diz Jucelina Feitosa.
"Não tem como sobreviver de renascença. Mas nós estamos trabalhando para melhorar isso”, afirma Maria Ivoneide. “O meu maior sonho é ver as rendeiras ganhando um salário mínimo.”


Enquanto a maré não muda, o lançamento da coleção Tulipas é um lampejo de novo rumo e a associação faz com que uma fortaleça a outra. "Às vezes eu até estou desanimada e elas me animam. O grupo se fortaleceu de uma forma que eu nem sei explicar a você como", diz a presidente da Cheia de Graça.
O nome da coleção, Tulipas, foi escolhido por se tratar de uma espécie de flor de “beleza pura nas suas diversidades de formas e cores”, como explica Maria Ivoneide. O nome poderia se referir às próprias rendeiras, mulheres em diversas formas, cores e vidas, conectadas pelo amor ao ofício da renda.


Naquele discurso de junho de 2021, quando ainda não havia a coleção, Maria do Socorro também soube definir bem quem são. “Somos uma obra de arte. Somos um monte de linhas que nos contorcemos para fazer uma obra linda.”

Dona Odete, lenda e renda viva

“Pode vir, que eu sei tudo sobre renda renascença”, diz ao telefone uma senhora de 94 anos. Não há mesmo espaço para modéstia. Quem fala ao telefone é ninguém menos que Odete Primo Cavalcanti Maciel, a mestra da renda renascença, uma das figuras centrais para a expansão desse artesanato em Pernambuco e no Nordeste como um todo. Ela é a história em vida e lucidez, já que é a única viva das oito primeiras mulheres a aprender a técnica em Poção.


Mesmo sendo acordada no meio de um cochilo, Odete não se incomoda. “Se aperreie não.” Senta-se na pesada cadeira de balanço de madeira no centro da sala e mostra o rolo com a peça laranja de renda que tem tecido à noite. A vista ruim resulta em ela ter que refazer de dia parte do trabalho executado na noite anterior. Sorridente, ela começa a falar sobre a origem da renda renascença.


O relato mais conhecido indica que o estilo chegou ao Brasil no período da colonização, trazido por freiras francesas. Porém, não ultrapassava os muros dos conventos. O sigilo de gerações, entretanto, teve fim no Agreste pernambucano.


Conta Odete que Maria Pastora, freira do Convento de Santa Tereza em Olinda, na Região Metropolitana do Recife (RMR), veio passar umas férias em Poção. Na cidade, ela ensinou a técnica a outra figura mítica da região, a Elza Medeiros, mais conhecida como Lala.


Com um pequeno trabalho em renda, Lala atraiu o interesse de Áurea Jatobá, uma viúva de posses, que solicitou que a mulher formasse um grupo para produzir o artesanato a ser vendido na capital. Segundo a pesquisa de Ana Flávia da Fonte Netto de Mendonça, foi criado então o primeiro grupo produtivo da região, formado por oito mulheres: Lala, Odete, Edite, Maria Lola, Zezé, Lourdes, Menininha Duarte e Leonor, também referida como Lenor.


Naquela época, entre 1936 e 1938, ainda existia uma preocupação de que a técnica fosse mantida em total sigilo, tendo as primeiras rendeiras que trabalhar com a porta fechada.


Posteriormente, Lala se apaixonou por um homem conhecido como Zé da Trompa, tocador de trombone. "A família não queria esse relacionamento de jeito nenhum. Aí um dia ela cismou e fugiu, deixou os trabalhos todos, uns começados, outros por fazer, aquela bagaceira", lembra Odete.


Com a saída de Lala, Odete foi convocada para liderar a produção da renda renascença. Ela era a mais jovem do grupo. "Nenhuma colega quis me acompanhar. Não gostaram porque eram mais velhas e eu que assumi", afirma. "Eu disse 'quem quiser aprender pode vir, porque eu ensino'."
O ofício começou a se espalhar. Quando a luz da cidade se apagava às 22h, elas continuavam madrugada adentro sob a luz do candeeiro. As encomendas eram muitas, mas Odete gostava do que fazia.


O trabalho era tanto que a mestre rendeira conta ter aguardado 10 anos para conseguir se casar, esperando ver se diminuía a quantidade de serviço. "Em 1955 eu casei. Vim embora para Pesqueira." Na cerimônia, ela usou um vestido de noiva feito de renda que ela e as amigas rendeiras confeccionaram.

Foto do casamento de Odete. Vestido de renda foi confeccionado por ela e seu grupo de artesãs.

Foto: Rafael Bandeira

Pela prefeitura, a idosa diz ter trabalhado como professora da técnica por 25 anos. "Tive muitas alunas em Pesqueira. Muita gente que aprendeu comigo já morreu. Já morreu muita gente e eu ainda estou viva, contando a história", comenta, sorrindo.

Para a mestre, a renda renascença nunca teve o devido valor. "A gente faz porque gosta, mas que tem futuro para quem faz, não tem não", opina. "O lucro é bem pouquinho. Trabalha muito e ganha quase nada."
A rendeira teve quatro filhos. A única mulher mora com ela. Nenhum dos filhos sabe tecer. "Eu não ensinei renascença a minha filha. Eu não queria que ela se afeiçoasse com a renascença, porque era uma coisa sem valor. Ela não sabe nada de renascença", revela.

Mesmo após ter fraturado o fêmur, o que a faz andar com dificuldade, Odete vai todas as quartas-feiras à Feira da Renascença de Pesqueira. Chega cedo para conversar com as rendeiras, mostrar suas peças e averiguar as demais. E continua tecendo renda. "Enquanto eu enxergar eu continuo. Mesmo mal feito, mesmo que não sirva para nada, mas eu estou trabalhando. A pessoa com 94 anos, o que está esperando mais? Não tem mais muito futuro não, não é? O negócio meu é não parar, porque eu não gosto de estar parada", afirma.

O renascimento de Noemy

Logo na entrada da cidade de Poção, berço da renda renascença em Pernambuco, é possível observar a fábrica da Noemy. A empresa, conhecida por aliar inovação com tradição, moda com artesanato, vive um novo momento, tendo que se reerguer após o impacto da pandemia da Covid-19.

Juntando bordado e renda renascença, a Noemy produz em torno de 85 mil peças por mês, além de 50 mil peças de lacê. São mais de cinco mil empregos indiretos gerados na região.


"A renda renascença tem um potencial incrível. Ela dá o que o mundo espera. O mundo está esperando algo sustentável, que valorize as pessoas que estão fazendo. Algo que não acabe ou deteriore, que não agrida a natureza." A fala é de Noemy Rutty, diretora-executiva e que dá nome à empresa.


Ela ainda estava na barriga de Maria Aparecida Gomes quando esta decidiu fundar a empresa de renda renascença, em 1989. "Minha mãe viu a oportunidade de fazer alguma coisa pela nossa cidade e pelas nossas rendeiras", conta a empresária. "Como ela era rendeira, ela sabe que a sazonalidade interfere no dinheiro delas. Ela teve e tem a missão de fazer com que a nossa rendeira tenha dinheiro e renda certa toda quarta e todo sábado", completa Noemy, referindo-se às feiras de Pesqueira e Poção, respectivamente.


A renda renascença da Noemy é feita fora. Nas feiras, a empresa dá os desenhos das rendas e recebe as encomendas previamente solicitadas. Na fábrica em si, são realizados os acabamentos.


Em torno de 50 funcionários trabalham na fábrica, inclusive homens, apesar da conexão entre feitura da renda renascença e o universo feminino estar presente no inconsciente coletivo da região. O número de empregados, entretanto, já foi de 150. Mas então veio a pandemia.


"A gente sofreu um impacto muito difícil. A gente trabalha com artesanato e as pessoas pararam de viajar, de comprar a renda. Nossa fábrica fechou, nossas rendeiras ficaram sem produção e precisamos demitir os funcionários que tínhamos", lembra ela.

Fábrica da Noemy em Poção, no Agreste de Pernambuco.

Foto: Rafael Bandeira

O olhar empreendedor fez com que a empresária percebesse a possibilidade de retomar por meio da confecção de máscaras de proteção. Durante a pandemia, a Noemy virou uma empresa credenciada para produzir máscaras ao Governo de Pernambuco. "A gente é uma Noemy de 33 anos, mas é uma Noemy de dois anos. Foi um recomeço, é uma nova história", afirma.

A poçãoense demonstra grande otimismo com relação ao futuro do artesanato, mas cobra mais atenção governamental. "Está faltando olharem o nosso polo como uma potência. A gente gera emprego. Pessoas que poderiam estar pedindo ajuda ao governo conseguem o dinheiro delas através da renda renascença." Ela acrescenta: "Se a renda não existisse aqui, as oportunidades de emprego seriam ou agricultura e pecuária ou prefeitura. A renda renascença em si faz com que toda a região se evidencie e ganhe dinheiro."

"Meu maior desejo é continuar, é que a Noemy vá além de mim, dos meus filhos, que a renda renascença se perpetue, não se perca com o tempo", diz ela. A empresa vende as peças por todo o país. São produzidos produtos de cama, mesa, banho, vestuário, decoração e infantil. Também já houve experimentos de envio para o exterior, a países como Angola, Estados Unidos e Panamá.

Referências:


'RENASCENÇA: representação histórica, social e visual do fazer renda em Pernambuco', de Ana Flávia da Fonte Netto de Mendonça;

‘Odete: A Mestra da Renda Renascença em Pernambuco’, do Senac;

'Pontos e histórias, renda renascença e mulheres rendeiras', do Programa Semear.

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