"Aí eu pego aqui, por trás, amarro, venho fazendo isso aqui tudinho, dou o nó certo para não desatar…” Enquanto explica o que está fazendo, Maria do Amparo da Conceição Silva não tira os olhos dos movimentos que reproduz com a linha e a agulha nas mãos. Fala pausadamente, como se descrevesse algo simples, enquanto se observa o ágil vai e vem da agulha. As linhas em suas mãos vão se transformando. Argolas em laranja e marrom, presas umas as outras, vão anunciando a formação de um colar de crochê.


Está lá na certidão de nascimento dela. Maria do Amparo da Conceição Silva. Mas vai ser difícil encontrar nas redondezas alguém que a conheça por esse nome. Para os íntimos e os não-íntimos, o nome dela é Ninha do Crochê.


A conversa se dá no terraço de uma casa verde em Macaparana, município da Mata Norte de Pernambuco, distante 120 km do Recife. A pequena cidade, com população estimada de 25.565 habitantes, é considerada por lei estadual a capital do crochê.


Na justificativa do projeto de lei que conferiu a Macaparana tal título, está escrito: “Por sua enorme contribuição para a prosperidade do Estado, merece Macaparana [...] destaque na área das atividades comunitárias, por ser conhecida como a terra da renda crochetada, que teve seu ápice no século passado e voltando a ter fabuloso sucesso nos dias atuais, tornando-se um produto a ser exportado para o mundo inteiro.” O texto datado de 2014 acrescenta: “Esses benefícios advindos dessa histórica tradição tornam unidas todas as mulheres macaparanenses que trabalham com crochê, reivindicadoras desse merecido e justo reconhecimento, o da concessão a Macaparana, o status de município Capital do crochê, no âmbito do estado de Pernambuco.”

Crochê de Macaparana, Pernambuco.

Foto: Rafael Bandeira

Mas, mais simbólico do que conversar com Ninha do Crochê na terra do crochê, é conversar com ela ali, no terraço daquela casa verde. Moradia que significa tanto para ela, erguida a partir de seu trabalho como crocheteira.

A casa era um presente para sua mãe. “Faz três meses que Deus levou ela”, lamenta Ninha. O luto está evidente não só na foto de perfil do Facebook da crocheteira - uma rosa negra em um fundo preto. Está também em seu discurso, que recorrentemente menciona a mãe.

Severina Maria da Conceição morreu aos 77 anos em decorrência de uma infecção pulmonar por causa da inalação de fumaça. A filha conta que Severina sempre teve problemas respiratórios. A fragilidade pulmonar fez com que a idosa fosse socorrida em muitas ocasiões.

“Ela morava no sítio e lá era muita poeira. Comecei a fazer peças e, através desse dinheiro, comprei os materiais desta casa.” Ninha lembra que deixou até de comprar roupas íntimas para poder adquirir as areias, os tijolos e o cimento. Praticamente todo o seu dinheiro ia parar no armazém de construção. “Eu via o sofrimento da minha mãe.”

E o papel de Ninha na construção da casa não se limitou à compra dos materiais. “Estourei as mãos trabalhando. Eu cavei a base, carreguei e quebrei pedra, tirei areia do rio, carreguei areia, tombei tijolo. Tudo isso eu fiz. Só não fiz levantar os tijolos porque não sei. Minha área é o crochê”, conta. O marido de Ninha já naquela época trabalhava como caminhoneiro de uma usina de cana-de-açúcar. “Eu não podia contar com meu esposo, porque ele tinha hora para chegar lá, mas não tinha hora para sair.”

Com a ida ao centro de Macaparana, a saúde de Severina melhorou. Foram 18 anos morando na casa verde. Em fevereiro deste ano, a vizinhança ateou fogo em uma vegetação e a idosa inalou a fumaça. Começou a apresentar uma respiração ofegante. Foi socorrida, ficou internada no hospital, mas não resistiu e faleceu.

“Ela tinha muito orgulho do meu trabalho. Ela dizia que nunca pensou que eu, com uma simples agulha, com um simples rolo de linha, conseguiria fazer uma casa para ela”, lembra a artesã.

Com uma simples agulha e um simples rolo de linha, Ninha conseguiu muito mais. Ela aprendeu crochê aos sete anos, e com a primeira peça vendida ainda quando criança comprou um caderno de capa dura. “Os patrões, que a gente morava na terra deles, davam os cadernos. Mas eu comprei um grosso, capa dura, que era o sonho da gente, porque só quem podia ter um desses era o pessoal mais chique.” Ninha ainda guarda as suas duas primeiras obras: uma toalha de mesa e uma colcha. “É uma recordação para o resto da vida, meu primeiro trabalho, minha primeira conquista. Eu não desfaço nunca.”

Ninha exibe colcha que fez aos sete anos.

Foto: Rafael Bandeira

Há cinco anos ela também adquiriu um automóvel. Um Gol Bola branco, ano 1999. “Através do crochê eu comprei um carrinho. Não é um carro zero, novo, mas foi do meu suor”, conta. Com o carro, Ninha consegue viajar até o Recife e vender os seus produtos a clientes e em pontos estratégicos, como as praias, aumentando o seu potencial financeiro.

O crochê não oferece uma vida luxuosa, mas Ninha entende que o artesanato lhe concede uma autonomia financeira que talvez não encontrasse em outra ocupação. “Do dinheiro que a gente faz do crochê, a gente vai ao supermercado, faz uma feira, vai em uma loja. Compra uma roupa, um calçado e assim por diante. Valoriza muito o comércio local”, reconhece.

A percepção da autonomia financeira das mulheres que vem a partir do crochê está presente no discurso de muitas artesãs macaparanenses. Na mesma rua da residência verde, Luzinete Correia da Silva Freitas, de 61 anos, tem uma casa em obras. “Eu já completei uma casa em que minha mãe mora e estou ampliando a minha”, diz. “O dinheiro do crochê não é muito, mas a gente vai juntando material, comprando aos poucos. Vou parcelando e vou pagando”, explica Luzinete. “Sem esse crochê em Macaparana, a pessoa não é nada”, resume.

Maria do Amparo Silva de Freitas, de 52 anos - não confundir com Ninha, que também é Maria do Amparo -, reforça que a técnica é essencial para a renda de muitas mulheres de Macaparana. “Tem muita mulher que trabalha com o crochê e toda a renda delas vem disso”, comenta. “Muitas delas conseguiram, em termos de bens materiais, comprar um carro, reformar sua casa, dar um meio de vida melhor para sua família através do crochê.” Amparo conseguiu reformar a casa e comprar um carro.

Ao contrário de muitas crocheteiras, que acreditam que a juventude tem perdido o interesse nesse artesanato, Maria do Amparo, ou Amparo do Crochê, fala que há muitos jovens interessados em aprender. E ela está a fim de ensinar.


Amparo sempre deu aula de crochê. Diz ter ensinado cerca de 40 pessoas. “Meu sonho é montar uma escolinha para ensinar artesanato às crianças”, afirma. “O crochê representa o meu meio de vida”, resume ela. “Eu estou com problema de depressão e isso aqui está me ajudando bastante. Eu não me vejo sem o crochê, é como se ficasse um vazio.”


Neste momento há um vazio na casa de Ninha do Crochê desde que Severina se foi. Mas Severina continua presente. Não só entre as fotos emolduradas na fachada da casa verde, mas também nos objetivos de Ninha. Além do marido, a artesã mora com o filho, que trabalha com som automotivo. Está nos planos da crocheteira construir uma pequena oficina para o jovem. “Estou correndo, batalhando, fazendo crochê para conseguir a garagem para o meu menino trabalhar, porque esse era o outro sonho da minha mãe.”

Luzinete Freitas e Maria do Amparo.

Fotos: Rafael Bandeira

Ao contrário de muitas crocheteiras, que acreditam que a juventude tem perdido o interesse nesse artesanato, Maria do Amparo, ou Amparo do Crochê, fala que há muitos jovens interessados em aprender. E ela está a fim de ensinar.


Amparo sempre deu aula de crochê. Diz ter ensinado cerca de 40 pessoas. “Meu sonho é montar uma escolinha para ensinar artesanato às crianças”, afirma. “O crochê representa o meu meio de vida”, resume ela. “Eu estou com problema de depressão e isso aqui está me ajudando bastante. Eu não me vejo sem o crochê, é como se ficasse um vazio.”


Neste momento há um vazio na casa de Ninha do Crochê desde que Severina se foi. Mas Severina continua presente. Não só entre as fotos emolduradas na fachada da casa verde, mas também nos objetivos de Ninha. Além do marido, a artesã mora com o filho, que trabalha com som automotivo. Está nos planos da crocheteira construir uma pequena oficina para o jovem. “Estou correndo, batalhando, fazendo crochê para conseguir a garagem para o meu menino trabalhar, porque esse era o outro sonho da minha mãe.”

Família alinhada

Parece até que são da mesma família. Dedé do Crochê, Ninha do Crochê, Amparo do Crochê, e a lista segue. Não necessariamente possuem vínculo sanguíneo, mas estão ligadas pelas agulhas e linhas que tão bem manuseiam. Costumam receber tal sobrenome as crocheteiras de Macaparana, para sempre associadas a arte que produzem.


Em alguns casos, são mesmo parentes. O crochê, ou “croché”, como chamam as macaparanenses, é uma técnica aprendida muitas vezes com a mãe, passando o saber de geração em geração.


No livro "Crochet: History & Technique" (Crochê: História e Técnica, em tradução livre), a pesquisadora dinamarquesa Lis Paludan apresenta três teorias sobre o surgimento do estilo na Europa. Na primeira, o crochê surgiu na Arábia, espalhando-se para o Tibet e Espanha, de onde alcançou outros países do Mediterrâneo a partir das rotas comerciais árabes; a segunda teoria fala em evidências de que o crochê veio da América do Sul, onde antigos povos usavam adornos feito com esse artesanato em rituais de puberdade; a última teoria está relacionada a antigas bonecas de crochê chinesas. "Não há evidência convincente de quão antiga a arte do crochê deva ser ou de onde veio", afirma a autora.


Em sua dissertação de mestrado "O 'saber-fazer' do crochê: valores do artífice e do patrimônio imaterial" (2017), Bianca Xavier Lemes menciona que a origem do crochê no Brasil ocorreu no Nordeste, sem apresentar maiores detalhes.

A estudante de enfermagem Jaquelyne Ferreira, de 21 anos, não sabe como Macaparana obteve esse destaque com o crochê. Na vida dela, a origem do ofício se deu com a mãe, Germana Calista, que por sua vez foi ensinada pela avó de Jaquelyne, Maria José Calista, a Dedé do Crochê.

"Eu vendo minha avó fazendo, minha mãe fazendo, sempre achei muito bonito”, conta Jaquelyne, que começou a dar os primeiros pontos com oito anos. É natural que as crocheteiras tenham iniciado ainda na infância, como uma brincadeira.

Dedé do Crochê, de 62 anos, é uma referência na cidade, citada sempre pelas outras artesãs. Ela se intitula a primeira pessoa a vender o crochê fora da cidade. “Aqui tinha um pessoal que fazia um crochê bonito, mas fazia para a família. Eu comecei a fazer e levar para fora. Eu era tímida, mas comecei a ir para Timbaúba, Carpina, João Pessoa, Nova Jerusalém, para vender. Dormi nas cocheiras de animais esperando amanhecer para conseguir vender na feira do Recife”, ela lembra. Dedé critica as crocheteiras que não se aventuram em vender as peças fora de Macaparana.

Afirma ter ajudado muitas mulheres na cidade. Ela compra peças das artesãs para revender em outros municípios e na loja que tem no centro da cidade. Assim, muitas crocheteiras obtêm sua renda das mãos de Dedé.

Germana Calista aprendeu a técnica com a mãe aos sete anos e viu sua filha também dar passos parecidos. Hoje, tem receio de que o artesanato atrapalhe Jaquelyne, que está no último ano de enfermagem. “Ela sempre me ajuda no horário que pode, porque tenho medo de atrapalhar a faculdade. Ela dá acabamentos, recebe encomendas e divulga na internet”, explica.

“Minha mãe sempre fala ‘primeiro os estudos, depois você me ajuda’”, relata Jaquelyne. Nem Germana nem Dedé cursaram uma faculdade. “Pelo fato de eu estar estudando, no momento o crochê não é uma prioridade, mas sempre que precisam eu ajudo”, completa a jovem, que só conhece duas pessoas da mesma faixa etária que fazem esse artesanato.

Jaquelyne Ferreira ao lado das peças que criou.

Foto: Rafael Bandeira

Sua avó também é fundadora da Associação Artesanal e Cultural de Macaparana (AACM), que passou quase cinco anos totalmente parada. Agora, tem retomado a associação. “Hoje já temos 20 pessoas. Botei a associação em dia e vamos fazer reuniões de três em três meses. A gente quer crescer cada vez mais”, afirma Dedé.

Germana vai assumir a presidência da AACM. “Eu estou correndo atrás de um futuro melhor para a associação, e de novas feiras, porque participamos de poucas”, diz. “Nós já passamos por muitos obstáculos, mas estamos aqui de pé e de cabeça erguida para lutar.”

A capital do crochê já não é a mesma coisa. Aquele cenário, ainda no imaginário de muitos munícipes, das artesãs crochetando na frente de suas casas ao entardecer, deixou de ser comum. A grande quantidade de artesãs torna pouco atrativo começar na área. As mulheres vão trabalhar em outros setores, como a fábrica de roupas.


Dedé do Crochê tem uma estimativa de que 30% a 40% das pessoas "mais simples" de Macaparana fazem crochê. Segundo ela, outras estão em fábricas de roupa e na produção de bolos. O bolo de rolo também é tradicional no local.


Não estão tão claros quais são os efeitos práticos do título de capital do crochê para as artesãs de Macaparana. Elas falam que gostariam de ser mais valorizadas e o incentivo parece mínimo. A gestão municipal passou a realizar a Maca Arte, feira de exposição de artesanato, cujo objetivo é retomar as atividades de cultura e eventos, impactadas pela pandemia. Já está na segunda edição. Segundo Germana, as crocheteiras de Macaparana vão contar com sete stands na edição deste ano da Fenearte, feira realizada no Recife que tem grande impacto na renda delas.

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