Reportagem Marília Parente
A mulher que costurou uma cidade
Publicado em 29 de junho de 2022.
Se fosse um ponto de costura, Terezinha Lira seria o crivo. “Trabalhadeira demais, dá um trabalho triste”, brinca. Sob um tecido telado, a técnica também é conhecida por sua capacidade de produzir peças únicas. Não é à toa que Terezinha tenha sido a principal responsável por tecer o enlace de centenas de mulheres do município de Lagoa do Carro, na Mata Norte de Pernambuco, à arte da tapeçaria.
Nascida em Limoeiro, no Agreste de Pernambuco, no dia 15 de outubro de 1950, Terezinha foi morar em Camaragibe, no Grande Recife, onde aprendeu a costurar, ainda aos três anos de idade, em razão de um emprego oferecido a seu pai. “Em casa, minha mãe bordava. Quando fiz 15 anos, me casei e os colégios não me aceitavam mais como aluna, aí fui aprender a cozinhar, bordar e costurar no Sesi de Camaragibe. Um dia, chegou um homem oferecendo um tapete pequeno para mãe fazer, mas ela não sabia trabalhar com o ponto de tapete, que é ponto de lira, só fazia o ponto de cruz. Quem terminou fazendo esse tapete todinho fui eu”, lembra.
Diante do trabalho bem feito, Terezinha passou a receber mais encomendas do primeiro contratante, a Sociedade Tapetes de Casa Caiada, em Olinda. “O tapete me deu autonomia em relação ao meu marido que me emprestou uma certa quantidade de dinheiro para negociar e pagar de volta em um ano. Seis meses depois eu paguei e ainda comprei dois terrenos na frente da nossa casa. A partir daí, nunca mais dependi de marido, por isso que eu amava tanto o tapete”, conta. Aos 23 anos, Terezinha já era mãe de três filhos quando decidiu se divorciar. “Ele tinha ciúme até do vento que balançava meus cabelos. Depois do término, ele foi até Casa Caiada para pedir que parassem de me dar tapete para fazer. Achava que se eu ficasse sem renda, voltaria para ele”, continua.
O tapete deu à mestra Terezinha autonomia para se separar do marido e investir em outras mulheres em Lagoa do Carro.
Foto: Rafael Bandeira
Incomodada com a perseguição do ex-marido, Terezinha decidiu se mudar, com os três filhos, para a granja do tio em São Lourenço da Mata, onde passou a ensinar a arte do tapete para outras mulheres. “Foi lá que conheci uma senhora, chamada dona Eunice, que me disse que eu deveria fazer o mesmo em Lagoa do Carro, que lá havia uma quantidade muito grande de meninas desocupadas. Nessa época, eu pegava tapete em Casa Caiada, fazia o desenho, o ‘inteligente’, e levava pra elas encherem. Eu dava a lã, ensinava a fazer o trabalho e pagava por ele”, explica.
Em sua memória infalível, Terezinha ainda guarda os detalhes do primeiro dia de ensinamentos de tapeçaria em Lagoa do Carro, em março de 1975. Em uma casa na zona rural da cidade, ela foi surpreendida com a presença de cerca de 200 mulheres que tinham recebido a notícia de que a mestra tapeceira lhes ensinaria um novo ofício. “Foi uma loucura. Levei 50 agulhas do Recife, não deu pra ninguém, foi uma briga. Aliás, lá nem vendia agulha, não tinha. Ninguém sabia o que era tapete, o que significava a palavra”, comenta.
"Ninguém sabia o que era tapete", diz Terezinha sobre
sua chegada em Lagoa do Carro.
Foto: Rafael Bandeira
Diante da dedicação das lagoenses do carro, Terezinha se muda definitivamente para o então distrito de Carpina, no dia 18 de setembro do mesmo ano. “Eu pagava um novelo de lã para elas aprenderem, elas passavam noite e dia treinando. Tive muito prejuízo. Passei 25 anos da minha vida dormindo duas horas por dia, dia e noite sentada no chão com as tapeceiras ou indo buscar os tapetes em Casa Caiada, com meu próprio carro”, continua.
A artesã logo passou a gerir pequenas células de produção, organizadas a partir de suas “chefes”, isto é, as mulheres que com ela aprendiam a arte da tapeçaria e ficavam encarregadas de repassar o conhecimento para outras.
Fazendo as vezes de atravessadora, Terezinha ficava com uma porcentagem dos tapetes transportados. “Aluguei uma casa em Lagoa do Carro para ensinar mais gente, fiz o mesmo em São Lourenço da Mata”, acrescenta. Apesar do aluguel de um espaço de produção, a casa de Terezinha vivia repleta de tapeceiras. “Me casei pela segunda vez e meu marido se incomodava com a bagunça na casa. As matutinhas viviam com roupas rasgadas e sujas, vinham trabalhar de pés descalços. Em 1976, a gente se mudou para Carpina”, completa.
Antes baseada no corte da cana de açúcar, a economia de Lagoa Carro passou a ter o tapete como carro-chefe. Diante das poucas possibilidades de trabalho na cidade, quase todas as famílias do distrito dedicavam-se à produção artesanal, que logo passou a ser escoada para todo o Brasil e outros países, como Portugal e França. O ambiente de prosperidade culminou com a elevação do distrito de Lagoa do Carro a município, no dia 1 de outubro de 1991, por meio da Lei Estadual nº 10619.
Risolange Rodrigues da Silva, secretária Municipal de Cultura e presidente da Associação das Tapeceiras de Lagoa do Carro.
Foto: Rafael Bandeira
“Lagoa do Carro é Terra do Tapete por causa de Terezinha e de sua bendita ideia. A tapeçaria permitiu que as mulheres de Lagoa do Carro cuidassem de seus filhos e casas enquanto trabalhavam no próprio ambiente doméstico. Elas deixam de depender financeiramente dos maridos ao conquistar renda própria”, destaca Risolange Rodrigues da Silva, secretária Municipal de Cultura e presidente da Associação das Tapeceiras de Lagoa do Carro.
Também no início dos anos 1990, Terezinha decide se aposentar da tapeçaria. “Enjoei. Nosso tapete ficou muito caro, é feito de lã e tela, está do mesmo preço que o persa. Além disso, fui muito roubada, deixava a matéria-prima na mão do povo e acabei levando prejuízo, muitas vezes”, lamenta. A mestra tapeceira, contudo, se diz orgulhosa de seu legado estético e social. “Muitos desenhos que vejo o pessoal vendendo hoje em dia, fui eu que criei. Também vejo que muitas mulheres em Lagoa do Carro que sofriam violência dos maridos conquistaram sua independência. Sou imortal”, conclui.
Associativismo: empoderamento definitivo
Associação das Tapeceiras de Lagoa do Carro.
Foto: Rafael Bandeira
De acordo com Risolange Rodrigues, o fim da atividade profissional de Terezinha Lira coincidiu com a fundação da Associação das Tapeceiras, que eliminou a necessidade de existência de uma atravessadora. “Em 1989, Isabel Gonçalves fundou oficialmente, aos 17 anos, com um grupo de tapeceiras de Lagoa do Carro, nossa associação, no primeiro prédio que existiu nessa área da cidade. Elas literalmente vieram tirar o mato do terreno que ganharam do então governador Miguel Arraes. Assim, a associação passa a se encarregar de trazer e levar os tapetes”, explica.
Para a presidente, o associativismo barateou a matéria-prima do tapete, pois permite a compra em maior quantidade, bem como possibilita que as tapeceiras tenham um local de trabalho, com custos divididos. “Para ter um ateliê, elas teriam que ter um nome muito forte sozinhas, o que não faz parte da realidade de muitas. Aqui, elas contam com um prédio inteiro”, frisa.
Na Associação, as próprias tapeceiras se revezam, por meio de escala, para atender ao público. Cena comum é ver a tapeceira trabalhando na criação de um novo produto enquanto comercializa o acervo disponível produzido pelo total de 16 associadas.
Lá, é possível encontrar tapetes que dos mais diversos tamanhos e estilos, sobretudo com a estética colonial que marca a tapeçaria de Lagoa do Carro, que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), começa a ter sua área ocupada em 1630, no contexto de desbravamento praticado pelos colonizadores da então capitania de Itamaracá, que se fixam às margens dos rios Capibaribe e Tracunhaém para investir na agricultura de subsistência, especialmente nos engenhos de cana de açúcar. “Até hoje, alguns dos tapetes mais procurados são mais tradicionais, inspirados na azulejaria portuguesa e com motivos de arabescos”, afirma Risolange.
Apesar disso, a organização oferece grande possibilidade de liberdade criativa para as tapeceiras associadas. A tapeceira Maria Lucineide de Oliveira orgulha-se ao contar que os tapetes geométricos coloridos com a mensagem de “Bem-vindo” são sua marca registrada. “Botei o nome de ‘Canalhado’, porque ele é alegre. Mas é um tapete tão bonito, pra ficar com um nome desse. Aí deixei Bem-vindo mesmo. É muito bom a pessoa chegar em casa e ver uma mensagem dessas tão bonita. Muito gratificante para mim”, comenta.
Tapeceira Maria Lucineide segura seu tapete com
os dizeres "Bem-vindo".
Foto: Rafael Bandeira
Por sua vez, a tapeceira Isabel Gonçalves Bezerra prefere desenvolver desenhos voltados para a cultura popular. “Maracatu de baque solto, casarões antigos e vaqueiros estão entre meus temas. A tapeçaria é uma arte. Tenho outra fonte de renda, mas é ela que me alivia espiritualmente”, coloca. Isabel, contudo, considera que a população local não costuma reconhecer a importância da tapeçaria. “Lagoa do Carro teve reconhecimento nacional e internacional por conta das tapeceiras.
No Brasil inteiro, somos elogiadas em feiras e somos chamadas para oficinas, mas aqui as pessoas não valorizam nossa produção, nem veem nosso valor. Eles admiram quando alguém de fora admira”, lamenta.