Reportagem Marília Parente
CARAIBEIRAS E A ORQUESTRA DE TEARES
Publicado em 29 de junho de 2022.
Uma falta de silêncio dita a cadência das manhãs e tardes de Caraibeiras, distrito de Tacaratu, município localizado no Sertão do São Francisco pernambucano. Lá, o dia só parece começar quando os primeiros batuques ritmados dos teares, aparelhos mecânicos utilizados para entrelaçar os fios verticais com os horizontais na arte da tecelagem, podem ser ouvidos. Uma verdadeira orquestra, que atravessa as conversas, os encontros cotidianos e as memórias dos 7.115 habitantes da Terra da Rede.
“Eu tenho é dor de cabeça se não estiver escutando a zoada do tear. Quando vou em Tacaratu ou em Inajá, que é a cidade vizinha, o ouvido sente falta. Na volta para cá, a cabeça fica elétrica e me sinto normal”, brinca a tecelã Neusa Nunes. Aos 53 anos, ela conta que recebeu os primeiros ensinamentos de tecelagem ainda na infância, de uma amiga da mãe que costumava frequentar sua casa, à época localizada no sítio Mulungu, na zona rural de Tacaratu. “Naquela época, o povo tinha mais o costume de cantar para acompanhar o tear. Eu, até hoje, ainda canto: ‘Caraibeiras, tenho saudade de tu/ Taracatu, eu quero te visitar/ vamos dançar esse forró a noite inteira/ no passo da laçadeira e na batida do tear”, entoa.
Neusa concilia trabalho na roça com a tecelagem.
Foto: Rafael Bandeira.
Risonha, Neusa fala com tranquilidade sobre a rotina de trabalho cansativa, em que intercala o trabalho na roça com a produção das redes. “Não dá para viver só de um ou do outro. Quando tem roça, a gente planta milho e feijão. No verão, não tem chuva, aí a gente fica só na rede. E assim vamos, só pedindo a bênção de Deus”, relata.
De tanto desejar um pouco mais de conforto em seu cotidiano, Neusa garante que previu, em sonho, o surgimento do tear elétrico, que diminuiu a necessidade de esforço físico humano na produção. Nos equipamentos manuais, a tecelã precisa forçar, por horas seguidas de trabalho, os pés contra os pedais para coordenar o movimento do maquinário. Para dar conta da produção em ritmo mais lento, as tecelãs costumavam iniciar o expediente pela madrugada. “Ninguém em Caraibeiras dormia, não. De noite, dentro das casas, era todo mundo trabalhando. Desde pequeninha, eu pedia a Deus que ajudasse para um dia aparecer um tear que a gente só tivesse que ligar ele para ir tecendo, sem tanto sacrifício. Pois sonhei com o tear elétrico que só vim ver que existia mesmo no ano 2000, quando seu Luizinho trouxe um para cá”, diverte-se.
Acomodada em uma cadeira no centro do salão da Cooperativa dos Artesãos Têxteis de Tacaratu, a tecelã Maria do Socorro Araújo, de 69 anos, também guarda na memória as dificuldades enfrentadas por sua mãe no manejo do antigo tear. “Minha minha mãe sangrava pelas pernas, as veias dela eram muito grossas, do tanto que trabalhava. Ela não sentia nada, quando a gente via, já estava a casa toda cheia de sangue. A gente amarrava uma palha na perna dela e seguia para o hospital em Paulo Afonso”, lembra.
Na infância, Socorro chegou a bordar à mão.
Foto: Rafael Bandeira
Ao som do bate-bate acelerado dos teares elétricos espalhados pelas garagens vizinhas, Maria do Socorro faz questão de apontar as diferenças das redes antigas para as atuais. “Aprendi a fazer rede antes de aprender a escrever. A gente ainda bordava elas à mão, de ponta a ponta, elas ficavam muito grossas, não tinha esses fios finos de hoje em dia. O povo fazia as tinturas para pintar elas com casca de pau, pegavam toda cor de fio”, acrescenta.
Agora, a tecelã convive com os efeitos de um aneurisma, bem como com a glaucoma e a catarata que afetam sua visão. Sem enxergar nitidamente os fios, ela se viu obrigada a abandonar a tecelagem. “Sinto muita falta, é o divertimento da gente. Dormia e acordava pensando em rede, até sonhava comigo tecendo, acordava com o sopapo dos braços. Graças à rede, eu e meu marido nunca trabalhamos para outra pessoa que não fosse a gente”, celebra.
Apesar do gosto pela arte, Socorro acredita que, atualmente, viver da rede em Caraibeiras ficou mais difícil. “Agora tem muitos concorrentes, gente com mais dinheiro tomou a frente. Eles conseguem fazer muita rede por dia, com mais estrutura, e nossa produção é pouca. Mesmo assim, minha filha e meu esposo ainda estão na tecelagem”, explica.
História
O distrito de Caraibeiras, no município de Tacaratu-PE.
Foto: Rafael Bandeira
Professora de história na comunidade de Caraibeiras e tecelã como a maioria dos vizinhos, Maria José de Araújo é a fonte mais procurada em Tacaratu quando o assunto é a história da rede no município. De acordo com ela, a relação de Caraibeiras com a tecelagem começa em 1895, quando a portuguesa Ana Serva Pastora chega ao arruado com um tear manual. “Aqui só viviam três famílias: Severo, Vicente e Araújo. Quando ela chegou, o povo se encantou pelo tear, mas a principal atividade econômica ainda continuou sendo a agricultura. Só que os trabalhadores passaram a levar um lençol feito pelo tear para a roça, cujas extremidades eles amarravam nos pés de imbuzeiro, para descansar. A partir daí, elaboraram o formato de rede”, explica.
Segundo a historiadora, os romeiros que migravam em direção ao Juazeiro do Norte, no cariri cearense, em busca de alcançar graças junto ao Padre Cícero, ampliaram a clientela da tecelagem de Caraibeiras. “Eles começaram a comprar lençóis para usar como rede no caminho, que era todo feito a pé ou a cavalo. Assim, o pessoal, ao invés de continuar na agricultura, assumiu a tecelagem como atividade principal”, completa.
Até então, o tear manual utilizado no local demandava a presença de duas pessoas em seu manuseio. “Nos anos 1960 surge o batelão, uma forma de tear manual para manuseio de apenas uma pessoa, que aumentou a produção. Se o tear de mão anterior só tecia duas redes por dia, o batelão tecia seis. Foi a passagem da produção manual para a maquinofatura”, acrescenta Araújo.
Para a historiadora, assim como na Revolução Industrial Inglesa, a produção da rede de Caraibeiras pode ser dividida em três fases. “A terceira começa no ano de 1976, quando um cidadão de Caraibeiras chamado Luiz Rêgo traz o primeiro tear elétrico. Ele descobriu esse maquinário em uma fábrica de tecidos em São Paulo e concluiu que seria possível aplicar aquela tecnologia para a rede. Com essa fase da maquinofatura, tem início a indústria da rede em Tacaratu”, comenta.
Potencial subutilizado
Cleonice Araújo, presidente da Cooperativa
dos Artesãos Têxteis de Tacaratu.
Foto: Rafael Bandeira
De acordo com a presidente Cleonice Araújo, a Cooperativa dos Artesãos Têxteis de Tacaratu surgiu no ano 2000, a partir de uma iniciativa do Sebrae de unir duas associações de tecelagem do município. “Depois disso, começamos a fazer capacitação e a expor nosso trabalho em feiras, como a Fenearte. Através das feiras, montamos o galpão onde funciona nossa sede”, conta.
Com 30 cooperados e maquinário elétrico, a organização atualmente produz mais redes do que consegue vender. “A gente envia redes para todo o Brasil, inclusive nossos produtos são comercializados pela Tok & Stok, mas falta mais apoio do poder público. Depois de dez anos de reivindicação, fizemos um projeto com a Adepe [Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco] e conseguimos o caminhão que vai escoar nossa produção”, comemora Cleonice. A presidente frisa que o alto custo do transporte da rede se dá tanto pela distância de Tacaratu de muitos dos clientes quanto pelo peso elevado dos produtos. “A gente acabava perdendo os pedidos, porque não tinha como fazer a entrega”, acrescenta.
Para Cleonice, contudo, ainda é preciso fortalecer a divulgação do trabalho da cooperativa para que a tecelagem local amplie definitivamente seu mercado. “Aqui, a rede tem a cara de cada um, são produtos muito bem aceitos. Todos aqui fazem rede com um pedacinho do seu coração”, diz.